quinta-feira, 30 de junho de 2011

Ao povo de lugar nenhum, só, com um lamento

as pessoas são capazes de tudo
li que um sujeito espatifou uma poodle na cabeça da mulher
essa foi uma das notícias mais bizarras
da qual tomei conhecimento
logicamente, ela (a mulher) deve tê-lo irritado bastante,
e a pobre da cadela estava ali por perto...

ninguém sabe quando a fúria vai emergir do lodo
só vemos seus efeitos quando já é tarde demais
não falo de assassinatos, falo do ódio diário
que não chega a matar, mas causa um problema dos diabos
e sequelas também difíceis de esquecer

também não falo da fúria previsível do sujeito que chega em casa
e, bêbado, espanca a mulher e marca os filhos, para sempre
essa violência, com ajuda policial e da Justiça,
pode ser estancada

falo do ódio que as pessoas têm de si mesmas,
daquilo que fizeram de suas pobres vidas,
ódio que explode internamente no bar, na rua, no trabalho, no trânsito,
depois de ter mudado o homem num monte de merda,
num ser sem voz ou dignidade, por anos a fio,
inescapavelmente

Pocker

Duas da manhã. Dunway abriu lentamente a porta de casa. Um homem entrou. Ele apontou o local. E ficou aguardando na sala, durante meia hora. Depois de tudo terminado o homem deixou a casa. "Quites?". "Tudo certo".

Sondra acordou feliz. Olhou para o marido e disse: "Perdeu de novo? E não tinha como pagar... Mas dessa vez, posso lhe garantir, valeu a pena. Bela cravada, meu bem". Dun enxergou Sondra com um olhar assassino. Ela começou a cantarolar um hit dos anos 70.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Vaga para deficiente físico

um homem andou pelas calçadas da cidade, ninguém soube
um homem esteve presente nos principais acontecimentos, ninguém notou
um homem sentou em bares pustulentos, bebeu, berrou, e daí?
um homem trepou, mijou, cagou, e não era para ninguém ter visto mesmo
um homem balançou na mureta de um viaduto, burramente, alguns se espantaram
um homem relaxou, mas sofreu muito também, às vezes, quem viu
um homem trabalhou - e trabalha - sol a sol por 28 anos, foda-se
um homem leu os poucos autores que valiam a pena e se retirou para o nada
um homem bebeu todas as bebidas pensando não ser necessário tudo isso
um homem viu suicidas saltando de edifícios, se enforcando ou metendo uma bala no crânio
era eu este homem, era qualquer um, era você
ninguém nem aí

Leve como a luz solar em meio algo escuro, num cubículo

Gia olhava de cima.

Tinha a melhor bunda do departamento e ela sabia disso. Todos sabiam também que ela era ninfomaníaca, mas se controlava no trabalho.

Um dia não resistiu e encarou Jeffrey, o gerente careca do almoxarifado. Ela pegou ele ao cair da tarde, quando Jeffrey fazia uma conferência solitária de duas remessas de papel-manteiga que tinham acabado de chegar.

O troço parece que esquentou.

Uma remessa de papel-manteiga ficou imprestável com os esguichos de Gia e outros borrões estranhos. Jeffrey foi suspenso por uma semana. Ninguém sabe se pela foda, pois Gia também era caso do chefão, ou se pelos borrões. Talvez pelos dois.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Anticlímax em meio a sapatos brancos sobre a amurada

“Você quer me matar, Dusquene”.

”Só quero que você se acalme, Marion. A enfermeira já vem. Cadê a droga da enfermeira?”

“Eu vou sair dessa maca”.

“O caralho que vai. Espere”.

“O que é isso? Você me empurrou. Você realmente quer me matar”.

“Porra, fique quieta um pouco. Cadê a enfermeira? Alguém, que seja...”

“Gina ele quer me matar! Gina, não me deixe só com esse homem! Gina! Gina!”.

“São 2 e 40 da madrugada. Vai acordar todo o hospital...”

“Gina! Giiinnaaaa! Giiiiiiiinaaaaaaaa!”

Uma enfermeira entrou no quarto, afoita.

“Quer dizer... O chamado pelo aparelho vocês não atendem, mas é só começarem os berros e logo correm...”.

“Que tem ela?”.

“Está alucinando devido a uma infecção”.

“Huum... Acalme-se, OK. Está tudo bem”.

“Você chamou sua amante, Dusquene. Estão de conluio para me envenenar”.

Não aguentei.

“Confesso ser uma das opções sobre a mesa”.

Marion arregalou os olhos e sussurrou para a enfermeira:

“Não lhe disse, Gina, estão todos combinados”.

De alma partida mas com uma fé infinita

li no jornal que um cara bateu na mulher
com a primeira coisa que lhe veio à mão:
um poodle branco

Gillmore bateu forte duas vezes com Tiffany na cabeça de Sheylla
no segundo golpe a cadela morreu, o cérebro partiu
o cara foi preso por maus tratos a animal e agressão

Sheylla, com um enorme hematoma no olho direito,
perdoou Gillmore e enterrou Tiffany no quintal dos fundos
numa bela cerimônia, mármore perfeito

os vizinhos compareceram, todos

Um pouco a mais não é importante

"Você é uma merda como todo mundo, Dusquene". "Sei disso". "Seus escritos só falam do lado sujo". "Esse é o que prepondera". "Desista logo antes que contamine a humanidade". "Não há esse perigo". "Fale baixo comigo, Dusquene". (...) "Não sou um de seus leitores malditos". "Cê comeu bosta, amigo?". "Olhe como fala comigo". "Enfie o cu no toco, cara", finalizei. De repente, o sujeito voltou-se para a parede do bar e continuou. "Não fale assim comigo. Já disse, lhe meto um processo". Acabei meu drink e saí.

Chauvinismo

corpo de mulher é bom para aquecer
curvas feitas para o encaixe do homem
corpo de mulher foi moldado
o do homem foi talhado a cinzel sem fio

corpo de mulher faz circular o sangue
não deixa de ser também um parque de diversões
contém duas montanhas russas
duas rodas gigantes
e um trem fantasma

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Mil pesadelos em meio à névoa da cidade suspensa

Era um castigo maldito.

Acordava aspirando a fumaça de breu da Steak Grill, ao lado. As janelas do cubículo onde eu morava pareciam feitas de carvão, de tanta fuligem depositada pelo vento. Fui reclamar com o gerente judeu do restaurante. O cara disse que iria construir a droga da chaminé até o topo do prédio dentro de um mês, no mais tardar. Um mês logo já era três.

Fui lá de novo:

- Estou respirando madeira torrada há três meses. Cadê a chaminé, Fullman?

- Sai em menos de um mês. Sem falta. Prometo.

- Esquece. Quero a chaminé para ontem. Trate de providenciar o troço, senão...

Fullman ficou sem cor. Entendeu a advertência como ameaça. Porém, eu quis dizer apenas que, se ele não erguesse a chaminé, eu apresentaria reclamação formal no Departamento de Obras e Posturas da prefeitura. Mas deixei correr, sem nada explicar, para ver no que dava.

Quinze dias depois a chaminé estava lá, suspensa no ar como a Babel antiga. Vazava dia e noite sua tosse negra. Mas nas alturas. Sobre os edifícios residenciais. O tumor carregado pela ventania.

Finalmente pude abrir um pouco as janelas. A fuligem não acabou de todo. Mas melhorou um bocado.

Num final de semana, Fullman saiu com a mulher para o litoral. Fechou a Steak.

À noite, um gato começou a miar, alto. O som escapava de dentro da chaminé. Talvez o bichano tivesse sido atraído pelo cheiro ou resto de carne e ficado preso, sei lá...

Depois de dois dias de miados infernais, sem ninguém pregar o olho, mesmo de ressaca como eu, a Obras e Posturas, atendendo a inúmeros chamados da vizinhança, arrombou o cadeado da Steak. Acharam uma ninhada de sete gatos pretos, negros como a noite, logo na entrada da chaminé.

Na volta, Fullman encontrou o estabelecimento interditado por evidente falta de higiene.

Pugilismo ao cair da tarde


De repente, rolou uma briga no bar.

Na verdade, o dono estava tentando deter um dos clientes, que, de tanto beber, pensou que estivesse no banheiro e começou a se despir. O homem ficou irritado com o proprietário e a luta seguiu no chão. O sujeito era gordo e não queria ser dominado.

"Ele quer me currar, esse filho-duma-cadela. Quer me currar!".

"Levante suas calças, Fred. Saia do meu bar", disse Bulford.

Embora franzino, Bulford tinha força nos braços e havia imobilizado Fred com um golpe por trás.

"Me ajudem. Esse cara quer comer meu cu!".

Por fim, Fred foi jogado na calçada. Levantou todo estropiado. As calças ainda meio arriadas. Era uma imagem triste. Havia se separado de Irene há um mês. E há um mês bebia pesado.

Soube depois de cinco meses que a cirrose, misturada ao conhaque, o havia levado.

Irene continuou rebolando seu rabo de aluguel.

domingo, 26 de junho de 2011

Na estante emparedada e verde do meu ser

1
Aprendi a não esperar nada das pessoas. É uma maneira de viver leve.

2
Detesto multidões. Cinco pessoas reunidas para mim é evento.

3
Quem se baseia na própria vida para escrever, é lido. Quem escreve ficção só está matando tempo.

4
É fácil conviver com a humanidade quando se está só ou embriagado.

5
Soro glicosado é sinal de inteligência. De quem recebe.

6
A maioria das pessoas não merece os anos a mais que vive. São grandes cagadas sucessivas, que duram 365 dias.

7
"Dusquene, cê não é escritor"
"Nunca disse que era"
"Seu texto é lixo"
"Embrullhe o peixe com ele, filho"

8
Dançar é uma forma de delírio. Para isso não tenho pés.

9
Quem leva foda a sério está perdido.

10
"Dusquene, devagar... Tá muito seca"
"Relaxa, baby"
"AAAghhhhhhhhhhh, filho-duma-tremenda-duma..."

Na lâmina

"Eu tenho 300 milhões de espermatozóides por milímetro cúbico". "E daí, Foster?". "Eu posso colonizar o mundo: EU SOU O PATRIARCA". "O caralho que é. Só na Ásia são 1,3 bilhão de chinas". "Mas eu tenho 300 milhões... O doutor falou que eu sou uma potência viva". "Foster, há quanto tempo você não trepa?". "Há dois meses". "Só fumando esses daí, né?". "É". "Brocha, né?". "É". "Então, vá ali, bata uma e libere os 300 milhões, senão saem pelos olhos".

Duplo

passo por oficinas, bares, lojas de departamento, evito os shoppings
me concentro nos bares num fim de tarde
paro um pouco, respiro,
é bom viver,
quem sabe?

o homem precisa caminhar e relaxar,
sobretudo relaxar, isso é felicidade,
mas se não der...

se você não gosta de sua mãe, não a visite
se a merda é com o vizinho, toque fogo no circo,
mas resolva a situação de vez

mas também é necessário ter paciência,
um pouco mais a cada dia, até que os fatos sejam vencidos
talvez por sua enorme capacidade de nada fazer

Chegada ao inferno

"Dusquene, acorde, Dusquene..."

"Me deixe dormir, filha-duma. Ressaca bruta..."

"Sabe aonde você está?"

"E quem quer saber..."

"No inferno, terceiro piso"

"Onde é a geladeira, água..."

"Aqui não tem. Ela evapora em milésimos de segundo"

"É? Então pode ser uma cerveja"

"Também não tem. Não há líquidos no inferno, só lava"

"Uísque... Porra, como no inferno não tem uísque, cerveja... Que merda de inferno é esse?"

"O seu, Dusquene, o seu", e o Diabo riu.

sábado, 25 de junho de 2011

ADEM - Encefalomielite aguda

"Momy, o que cê viu no topo da infecção?".

"Quinze médicos me olhando de dentro da luz do teto".

"Um mandril de rosto negro sentado no sofá, grunindo".

"Você cheio de dentes podres, aos pedaços".

"Tarântulas infestando o chão do quarto e subindo nos lençóis".

"Milhares de varejeiras querendo entrar nos meus buracos".

"Cachorros estranhos que estraçalhavam os meus pés".

"Aves de rapina tentando arrancar as janelas".

"Criaturas com três olhos que grudavam nas paredes e...".

"Pô, Momy, que barato legal. Doidona essa sua viagem".

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Ao inferno

Vá, Dusquene, ao inferno
Saia às ruas
Compre uma passagem, só de ida,
para lugar algum
Sofra, sem alarde,
as intempéries
da vida,
sol a sol

Não adianta,
é preciso dobrar a dureza
dos rins, da pele,
antes de abandonar o ringue
cheio de hematomas

Vá, Dusquene, seu bode velho, ao inferno
Deposite lá sua alma vil,
cheia de menosprezo
Não hesite, faça
Aproveite a viagem
e pergunte ao sujeito, enfim,
qual o lastro das coisas vistas
e que ainda serão
em sua vida meio morta
de insônia da tamanha realidade

Impressão de algo tardio no varal

"Fale sério, Bean Jim, você não está vendo isso". "Estou, conheço as pessoas pelos dentes". "Como assim?". "A mulher pode ter os dentes mais brancos do mundo, mas eu os vejo todos podres. Então sei que a mulher não vale nada. A mesma coisa com homens". "Cê é doido, Bean Jim. Isso é só suposição sua". "Que nada! Sempre dá certo". "Você aproveita isso como?". "Já recusei empregos porque vi os dentes de meus chefes imediatos. Os dentes pareciam bons para os outros, mas, para mim, podres. Logo, os chefes eram uns sacanas". "Puta-que-o-pariu, cê é maluco mesmo, Bean Jim". "Falar nisso, Bill, seus dentes estão meio amarelados".

Um resto

que temos nós com isso?
se na esquina há a visão do homem morto
se a dor permanece clara em cada rosto
se a realidade enche os bares de vazio
se morremos pouco a pouco a cada dia

que temos nós com isso?
com a fé exagerada das pessoas
com as calçadas repletas de estranhos
com os hipócritas sondando nosso solo
com o seguir sem fim para o grande nada

que temos nós com isso, afinal?
sendo precária a sustentação de toda a vida
sendo improvável não ser sarcástico ou defensivo
sendo estreita a porta dessa entrada
sendo impossível afirmar que está aberta
e só

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Tempo seco ao norte

o grande poema está para ser escrito
um que fale verdadeiramente de tragédias cotidianas
de turbilhões e de cansaços
de bares e putas, de traumas e delírios
de humilhantes desistências

o grande poema está para ser escrito
um que "anatomize" os prazeres urbanos reais
com a limpidez de um corte
com crueza, sem armadilhas
com a força de mil braços
o grande poema
sai

o grande poema está para ser escrito
um que exponha as entranhas de mil seres
cheio de vivências abaladas em cortiços
cheio de misérias, dores e doenças
cheio de mim e de você um pouco
o grande poema

Infecção

"Ei, Suzzy, feche essas pernas que tem um homem na TV querendo ver sua xoxota". "Tem não, mãe". "Tem sim. Olhe, tem quinze médicos na lâmpada querendo ver meus peitos". "A senhora está vendo coisas, mãe". "Vamos reclamar pro administrador desse hospital". "Que hospital, mãe, estamos em casa". "E por que você ainda não serviu as visitas?". "Que visitas? Estamos sozinhas na sala vendo TV". "Feche as pernas, Suzzy, olha o homem de novo espiando".

terça-feira, 21 de junho de 2011

O que devemos fazer para impor respeito

"Eddie, sai da soleira e deixe o gato passar". "Não, mãe. Ele é porco". "Como assim?". "Não caga na caixa". "E, daí? Seu pai não costuma acertar o vaso e eu estou com ele, não estou?". "Mas pai vale mais do que esse gato, mãe". "Quem disse? Seu pai é um MERDA, Eddie. Uma grandessíssima merda seca". "Não fale assim dele". "Falo dele do jeito que eu quiser". "Vá tomar no cu, mãe!". "O que? Cê me respeite!". "Tudo bem, a senhora eu respeito, mas esse filho-duma...". O pontapé de Eddie fez o gato voar e se estatelar na mureta rosa da varanda. O animal levantou grogue e saiu mancando a perna traseira esquerda. Viu que não era uma boa hora para pedir sua sardinha para mamãe.

O fato é o mesmo e sem razão alguma III

quero ficar quieto
me deixem quieto
não mexam comigo
às vezes, não estou legal

sou uma iguana
sou contra qualquer esforço físico
prefiro quentar ao sol
a caminhar

por isso, me deixem só
e extremamente quieto
sobre as pedras
de minha vida
ilhada

Qualquer coisa dita é nada

a Grécia realmente conseguiu
sua dívida é de 144% do PIB
tem 11 milhões de habitantes
e sua crise ameaça agravar as de
diversas economias combalidas
como as de Portugal, Espanha e Irlanda

precisam de uma ajuda total
de mais de 230 bilhões de euros
e eles fazem um tumulto danado

os caras têm aquelas ilhas todas
Santorini e o escambau
o mar azul do Adriático
e fodem com o planeta

não adianta, Grécia,
o esforço é inadiável
e não há outra filosofia
que dê jeito

fora da zona do euro
não há vida sem moeda própria, respeitada

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Realidade de um crime aberto

o sujeito precisa
aguentar o ramerrão,
se fraquejar
já era

o passar dos anos
destrói muita coisa
boa e ruim
destrói sentimentos
e, principalmente,
nossa boa vontade

uma multidão de rostos,
esquecidas falas e gestos,
dos quais você nem se lembra
porque não tiveram realmente
a menor importância

e precisamos, muitas vezes, ser duros assim
até com os que conhecemos, para que possamos viver
com certa dignidade

domingo, 19 de junho de 2011

A mulher que não tive porque perdida

"Vê aquela ali?". Olhei. "Ela é alienígena, cara. Veio de Zeta Reticuli ou coisa parecida. É doida. Ninfomaníaca". "É?". Olhei a dona mais atentamente. Era loura e tinha belos quadris e pernas. "Disse que seu objetivo na Terra é reprodução. Sabe-como-é, mistura genética. Diz que seu povo às vezes nasce com deformidades: três braços, duas cabeças...". "É?". O cara falava e falava e eu só olhando a dona. "Tem gente lá que também nasce com rabo...". Ele viu minha cara. "Não esse tipo de rabo. Todas nascem com esse rabo. Mas digo rabo mesmo, de macaco". "É?". "É, é estranho mesmo". "Pois quero ver essa dona nua". "Cara, ela é alienígena...". "Quero fazer parte da experiência. Só vou conversar amenidades, como andam as coisas lá em cima". "Cê é louco, cara?". "Só um pouco". Já estava indo quando a mulher se levantou. Havia algo atrás em sua calça jeans, uma protuberância arredondada que descia pelo rêgo da bunda. Era visível e todos faziam que não viam. "É", eu disse, "estranho, muito estranho". Desisti e voltei ao meu drinque. "Eu não disse? Eles estão no meio de nós, cara". O doido, então, riu seu riso de vitória.

Lucky Bird

quando o pássaro
da sorte
pousar
num dos galhos
da árvore
já será tarde

terei vivido
a vida
bem ou mal
e alguma doença
fatal
já terá se
instalado

então,
olharei pela janela
e verei a ave
bater suas asas
de luz
anunciando
o grande dia
esperado

dia esse que será
inaproveitável
estúpido, comum
como a própria vida
que vivi

sábado, 18 de junho de 2011

14.300.000.000.000

14.300.000.000.000
a dívida pública norte-americana assusta
e falam em aumentar o teto de endividamento
(e é necessário, por incrível que pareça)

mas nada que uma economia de U$ 250 bilhões ao ano
e uma política agressiva de resgate de títulos públicos
não resolva

duro é a briga entre democratas e republicanos
para se chegar a um acordo
de corte de gastos
que não fira o social
nem paralise ainda mais
a economia

enquanto isso, na montanha,
a dívida está prestes a virar avalanche
sobre tudo e todos

Sandra Dee e Sylvia

Sandra Dee Dee foi de bar em bar procurando Tommy. No Lancaster ela o encontrou bolinando Sylvia. Sandra viu vermelho. Partiu para cima de Sylvia com a lâmina. Deixou uma bela marca em seu rosto. É assim que mulheres marcam seu território e seus homens, fodendo com as outras de melhor qualidade. Sylvia dificilmente vai encontrar agora alguém que lhe coma, pois entrou na posse de Dee Dee. Animais são mais sociáveis do que mulheres que topam com outras mulheres no colo de seus homens. Já presenciei brigas homéricas em bares e becos por essa razão. Boas lutas, bons golpes.

Sem título XIX

há agora um vazio
que nos pega
que, antes,
não havia

toda essa parafernália
todo esse estresse
toda essa urgência
de mensagens
trocadas

existe agora uma expressão
de medo em cada rosto
como se a corda
estivesse prestes a
romper

e viveremos, assim,
daqui por diante,
dias de seis horas,
porque o tempo
é este


e nele eu me encontro

sexta-feira, 17 de junho de 2011

bons bares têm paredes verdes

bares fechados
me deprimem

bares
são
naturalmente
avessos
a portas cerradas

quantas vozes
quantas estórias
aprisionadas
marcam
suas paredes
sujas

muitas narram coisas
débeis, ridículas,
torpes, talvez

porém,
bons bares
são o elixir
da vida
a fonte
da juventude

bares não deveriam fechar nunca
só com a morte do dono
ou a minha

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Em mim há algo até de bem com a vida

bebo
outra garrafa curta,
ouço os latidos
e escrevo,
na madrugada,
o poema

hoje
o poema
saiu às avessas,
igual cão danado
que cruza
o terreno
e crava
seus dentes
em mim

mas ele sempre
surge, assim,
de um pandemônio
e nunca
reclamei

não quero
agora,
restando quatro garrafas
para beber,
ser uma presa
que chora e
lamenta a sorte
que sempre esperou

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (23)

“Não, Joe, e você não pode me forçar a fazer algo que eu não queira”. “E o trato?”. “Não tem trato algum”. “Você prometeu que, se eu lesse A Vagina Morre ao Sol, você leria meus poemas”. “Que nada! O que você quer é me afogar nesse entulho”. “Mas eu tive que ler a novela toda...”. “E leu um grande livro”. “Aquilo não é um livro, é uma atentado violento ao pudor”. “Mas tem as fadinhas e os duendes...”. “É, uma orgia sem fim naquela porra de jardim”. “É, tem isso também”. “Você não vai ler mesmo os poemas, não é?”. “De modo algum”. “Pois vou lhe dizer um negócio: A Vagina Morre ao Sol é uma enorme mentira, um engodo, e, em certos momentos, ela até gagueja e soluça”. "Hum... Legal ver uma vagina soluçando..."

Fêmeas

Existem mulheres que, quando passam, o mundo parece que vale alguma coisa. Mulheres carnais, sexy. Outras, muitas outras, estragam a paisagem, o dia, jogam lodo na roda.

Mulheres feias, mas simpáticas... Que eu me previna delas. São a danação. Servem para ser enfermeiras, nada mais. Bem, se o cara já está no hospital, então que ele sofra integralmente...

Belas mulheres deviam ser emolduradas. Eternizada a beleza e o viço da juventude. Feliz o homem que teve na cama uma destas. Sua vida não foi em vão, de algum modo.

Quem teve as outras... Bem... Foi porque fez por merecer.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (22)

Blind Date

“Quem é?”

“Aqui é Rajesh Voojoo, secretário do Grande Aranda Kalapajaloo. Informo que o senhor se encontra em atraso com uma mensalidade-doação para nossa entidade”

“Como é? Quem é?”

“É o Rajesh Voojoo, secretário do Grande Aranda”

“Escuta aqui, Voodoo...”

“É Voojoo, senhor”

“Tudo bem. Que seja. Eu não sou filiado a nenhuma seita. Só contribuo com o asilo das putas, quando dou uma”

“O senhor realmente necessita da espiritualidade do Grande Aranda... Venha nos fazer uma visita. Aproveite e traga o carnê para o pagamento da mensalidade”

“Ó cara, vá se foder. Já disse que não conheço nenhum Kapalo...”

“Desculpe. Mas é o Grande Kalapajaloo...”

“Esse mesmo e...”

“O senhor precisa pagar a mensalidade para manter acesa a sua vela da vida. Senão...”

“A vela é grossa, Raj?”

“É. Por que?”

“Enfiei ela toda no cu do Grande Aranda como minha contribuição particular para a ordem”

“Mesmo assim, gostaria de lhe informar que sua mensalidade ficará em aberto em nossos arquivos. Ligarei dentro de uma semana”

“O que? Alô... alô...”

Uma homenagem cheirando a cevada

Bukowski está morto há 16 anos,
mas o velho safado está vivo, bem vivo nos bares,
nas dolorosas mentes dos desesperançados
Chinaski continua a distribuir cartas na rua
e a poesia morreu um pouco depois disso

Bukowski está morto há 16 anos,
o moto continuum, o pular de subempregos parou,
mas ainda há a mosca insistente a rondar
o copo e a cerveja derramada no balcão
e a poesia morreu um pouco depois disso

Bukowski está morto há 16 anos,
e o mundo continua a mesma porcaria,
mas há seus livros de humor e dor pungentes,
há uma coragem que ficou em cubículos calcinantes,
mesmo que a poesia tenha morrido um pouco depois disso

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (21)

Não brinquem com Lenora Fatfull

Lenora FatFull chegou cansada do supermercado, onde trabalhava por 12 horas como caixa e empacotadora. Encontrou Tillburn com uma lourinha em sua cama de ferro. Tillburn ficou mais branco do que era e a lourinha tentou sair da cama, em vão. Recebeu um tapa bruto de Lenora, que quase lhe virou o pescoço. Lenora trancou a porta e disse.

- Não saiam daí! Nem tentem!

Foi à cozinha e, dez minutos depois, voltou com uma jarra de café bem quente e um sorriso escroto.

- Vamos beber. Tillburn adora café.

- É? - tremeu a loura.

Lenora entregou uma xícara para Tillburn e uma para a lourinha.

E seca avisou.

- Coloque perto do seu pau e você, minha querida, perto da xota.

- Mas o que você?

Tillburn não terminou a frase. Um tabefe estalou em sua cara.

- Faça! - Lenora intimou fria.

O que se ouviu no apartamento em seguida foram berros tenebrosos, entrecortados com sopapos, e uma vozinha, ao longe...

- Um pouco mais de café, querido? Oh, você também quer? Não seja por isso...

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (20)

Um evento natural no Grand Hotel

Fred: Oh, meu Deus... O que é isso! Você quase decepou a minha glande! Puta-que-o-pariu!

Melissa: Desculpe (cuspindo saliva e sangue)... Eu não tive intenção.

Fred: Eu lhe disse pra tirar a porra desse aparelho ortodôntico antes do boquete! E agora? Pegue uma toalha... Oh, Deus...

(Melissa corre para o banheiro. Volta com uma toalha de rosto).

Fred: Sua cadela! Olha a enxurrada... Tem que ser de banho. De banho! Ligue pra emergência!

Melissa: O que?

Fred (já agachando): A emergência!

Melissa: Mas, e a toalha?

Fred: Esqueça a toalha. Ahhgg...Oh, meu Deus! Não para de sangrar. Estou ficando tonto... O que você está fazendo?

(Melissa, olhos assustados, girando a chave e abrindo a porta).

Fred: Aonde você vai? Volte aqui, vadia... Estou vendo negro.

Sete horas depois Fred foi achado morto, estendido sobre o carpete. Segurava os colhões, num mar de sangue. O tampo da glande do lado.

Grandes bolas de merda

90% do que um escritor escreve são bobagens. 10% quem quiser que leia. Eu não li muitos livros. Foi o que me salvou. Quem está atrás de estilo já está morto. Nem comece ou continue. Faz 30 anos que patinamos em livros miseráveis. Impublicáveis. Mas publicados por causa dos lucros que proporcionam às editoras. Grandes bolas de merda, jogadas por modernas catapultas, que se espatifam nas ruas e melam as pernas dos incautos.

terça-feira, 14 de junho de 2011

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (19)

Uma tarde feliz entre pombos e gatos

Quando entrei na casa, dei de cara com o pombal, numa das laterais. Na verdade, uma tela de galinheiro, armada entre pilotis de ferro, com uma dúzia de pombos atrás, fechando toda a varanda de Buba PopCorn.

"Mas o que é isso?", cheguei perto e levantei o braço para apontar para o troço.

"NÂO TOQUE NA TELA! ELES SENTEM O CHEIRO", disse Buba.

Era uma negra gorda, de 100 quilos.

"Eu não ia...Só queria saber por que?".

"Gosto de pombos".

"Eu de gatos".

"Hummm. Não fui com a sua estampa, garoto".

Olhei melhor. Havia alguns pombos dominantes, que corriam, espantavam os outros. Havia um cinza marrom. Perguntei se era o big boss.

"Esse é o Poncho. Aquela é a Suma. Esse branco é o Franco, só vive no chão. Asa esquerda quebrada. Esses maníacos do parque. Pode ter sido também um gato", e Buba me olhou desconfiada.

De repente, falou.

"Agora, franguinho, vamos transar".

"O que? Não, Buba. Vicky está para chegar. Ela é sua amiga. Não acho certo e...".

"Vamos transar já!"

"Mas eu não..."

"Já, Dusquene. Pro quarto..."

Fui empurrado, forçado, estuprado. Em agonia, eu arfava para seguir o script, enquanto os pombos se desbatiam no cercado estreito, assustados com alguma coisa ou com tudo.

Consegui, não sei como, mas consegui.

Dez minutos depois estávamos na sala, esperando Vicky.

Um toque na campainha.

"E ai", disse Vicky, "Vocês se deram bem? Gostou do Duc, Buba?".

Buba me olhou, séria. Bochechas infladas. Beiços grossos e curtos.

"Sei não. Ele é chegado a gatos".

Cenário 57-A

Bobby entrou no apartamento tropeçando. Outra vez de porre.
Entrou no quarto e viu Samantha dormindo, ou fingindo dormir
Samantha ouviu que ele abriu as portas do guarda-roupa
De repente tudo ficou quieto
Samantha desconfiou
"O que você está fazendo aí, Bob?"
Bobby mijava em todas as roupas
"Banheiro, mulher. Banheiro..."
Em seguida, Bobby chamou "Raul"

segunda-feira, 13 de junho de 2011

O que guardo em mim e é um pouco humano

1
Sempre que eu vejo a miséria humana, me surpreendo como podemos ir cada vez mais baixo.

2
Existir não é nenhum problema. O problema é a carga que nos colocam sobre os ombros para isso.

3
Deus não estava de bom humor quando me fez.

4
Sinceramente, sou até um sujeito legal, quando não encontro pessoas.

5
A melhor bebida é sempre a penúltima da penúltima.

6
Foder não é para amadores.

7
Casal que trepa unido, divorcia.

8
Ninguém fica feliz no Natal.

9
No Natal, quem paga o pato é o peru.

10
"Acima de seis, é suruba", me disse Sarah Lee.

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (18)

UMA LUMUMBA, rei de África

Um microconto do Otto Dusquene

Vicky Lane foi quem me mostrou a estatueta de UMA LUMUMBA na estante de seu apartamento. Era algo como um Buda preto, gordo, de grandes beiços, com orelhas enormes portando grossas argolas. Era feito de granito negro, me disse. Tinha 23 centímetros.

“Ela é afrodisíaca. Quem passa os dedos na boca do LUMUMBA tem uma ereção de cinco horas, dizem”.

“Opa. É disso que eu preciso...”, e fui logo estendendo a mão.

Vicky riu e parou minha mão no ar.

“Calma aí, engraçadinho, como é que EU VOU AGUENTAR as suas cinco horas de ereção”.

“Bem. Se eu roçar levemente os dedos na bocona do UMA talvez eu entese apenas uns 20, 30 minutos... e isso é mais do que suficiente para mim. Não sei se para você...”.

Outra boa risada de Vicky.

“Passe dois dedos apenas”, disse, por fim, séria, meio petulante.

“Isso dará uma hora de foda... no mínimo”.

“Pode passar”, ela disse, empinando os seios.

Sorri minha cara de sátiro.

Ela corou. A sacana.

Ergui vagarosamente minha mão bêbada até a estatueta.

UMA LUMUMBA, você é o cara!

VOCÊ É O CARA!

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (17)

Diálogo casual no fórum

"Por acaso, você gosta de pornografia?"

"Eu só escrevo sobre..."

"Seus escritos são cheios de lodo e pus"

"Normalmente os homens são feitos disto"

"Entenda, Sr. Dusquene, sua situação é muito delicada no momento"

"Diga logo que estou fodido, meritíssimo. Sem meias palavras"

"O senhor está fodido, sr. Dusquene"

"Qual é a novidade?"

"Como?"

"Acordo fodido, cago fodido, bebo a borra do café fodido. Trabalho fodido. Volto pro apê fodido. Só fodo quando estou com Gill"

"Quem?"

"Minha mulher"

"Ah... Bem, por hora está dispensado, sr. Dusquene. Volte a este tribunal quando for intimado. Mas antes..."

Deixei uma dedicatória para o juiz no meu último livro de poemas, que ele me apresentou. Continha os poemas mais indecentes que produzi até hoje.

Deixei o tribunal e fui ao Finnegan's tomar um trago.

Todo mundo gosta de uma sacanagem.

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (16)

Uma manhã de verão esplendorosa sobre as rochosas


- Desce daí, Bulford.

- Eu vi a LUZ, Duc. Eu vi!

- Tudo bem, mas sai do parapeito dessa porra de ponte e vamos tomar uns drinques.

- Ela surgiu bem na minha frente,Duc. Uma luz clara como o sol. Quase me cegou.

Bulford sorriu mostrando os poucos dentes podres. Olhar vidrado.

- Certo, rapaz, agora desce daí e vamos conversar. Quero saber tudo sobre a luz, mas frente a frente com você. Realmente preciso de orientação na minha bosta de vida.

- Então, você que ser um seguidor da LUZ!

- Quero, quero muito.

- Então, sobe aqui, Duc.

- O caralho, você desce.

Bulford exultou. Havia conseguido seu primeiro discípulo.

Quando o mendigo pisou no chão, apliquei-lhe um direto no rosto, mas sem pegar forte.

- Seu merda filho-duma-puta. Tenho menos de quinze minutos pra chegar na porra do trabalho. Tenho de enfrentar esse calor de deserto e, como se o cu do meu dia não fosse suficiente, ainda preciso tirar você da buceta dessa ponte do cacete. Seu cu!

Bulford, massageando o rosto, ainda meio grogue, com uma voz enrolada disse:

- Mas Duc, você não quer mais seguir a luz? Ser meu discípulo?

Ele viu que eu não estava pra brincadeiras.

- Cê você falar mais uma vez desse caralho de luz, eu é que lhe empurro dessa droga de ponte.

Bulford me olhou atônito. Avançou devagar para a ponte. Deu uma olhada lá pra baixo.

- É bem alta, né?

Então eu me arrependi do soco que lhe dei. Não gosto de coisas fáceis.

- É, bem alta. Vamos. Eu lhe pago uns drinques no Salina's.

Um canto do homem em desespero

tenho que parar de beber tanto café
de ver gente de manhã, de tarde, de noite
tenho que me controlar e não esmurrar o muro
feito de concreto e fel
sou isso

meu caminho sempre foi difícil
cheio de entraves e demoras
cheio de delírios e merda
cheio de dinheiro curto

é como se as coisas tristes
se apegassem a mim e dissessem
"Dusquene, fique comigo, não vá"
e eu fico e me fodo todo

não adianta ilusão ou fraqueza agora
tenho de prosseguir até o fim
até que eu me submeta completamente
até que eu desanime e chore
um pouco

domingo, 12 de junho de 2011

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (15)

Tristes dias aqueles de maio

Eu separava as planilhas no banco. Agrupava os requerimentos de pequenos empréstimos de acordo com capacidade de pagamento do solicitante. Ou seja, se o sujeito informava uma renda razoável, mais chances ele tinha de conseguir o dinheiro. Era uma merda, porque havia aqueles que nada tinham a oferecer.

Um dia uma velha entrou com dificuldade no banco. Sentou na minha frente. Disse que precisava de um dinheiro para levar o marido ao oculista e comprar uns óculos novos para ele. Havia suspeita de glaucoma.

Pedi a ela algumas informações. Renda não havia. Infelizmente, informei à mulher que o empréstimo não poderia ser concedido. Seus olhos se encheram e as lágrimas começaram a descer. Seus lábios tremiam. "O que eu vou fazer agora, meu filho?". Eu não sabia o que lhe dizer. Eu era estagiário sênior naquela época e não ganhava nem para substituir meus sapatos velhos.

Por fim, não aguentei e menti no requerimento. Coloquei uma renda que achava que seria suficiente para a aprovação do empréstimo pelo gerente. Pedi que ela assinasse uma série de recibos, que bati rapidamente, para que comprovasse aquela renda. Pedi que telefonasse dentro de três dias para ver se o emprestimo havia sido aprovado. Era uma tentativa pelo menos.

Depois de tudo, a velha olhou para mim. Sorriu. Nada disse. Apenas contorceu seu lenço e se foi.

Era uma esperança. Uma esperança apenas, mas nada.

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (14)

Vanda Velt

Vanda Velt, que mulher. Quando ia ou vinha do balcão, os caras uivavam. Aquelas pernas brancas de potranca polonesa, a Vanda Velt. Ela sabia como açular a turba, remexendo os quadris, pisando como tigresa. Era um espetáculo. E gratuito. E a um metro da gente. Deixava qualquer um de pau duro.

“Me faz uma massagem, Vanda? Tenho cãibra...”

“Aonde?”

Eu descia, brincalhão, os olhos pro garoto teso.

“Vá se foder, seu miserável”.

E me atirava na cara, gargalhando, o pano de limpar balcão.

Todos gargalhavam numa confraria.

Naquele tempo, as noites eram excepcionais no Finnegan’s.

Realmente excepcionais.

Havia Vanda Velt.

Que mulher.

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (13)

Uma conversinha no almoxarifado...

“Não tenho nada de errado, Wilburn. Sou perfeitamente capaz de lhe dar uns tabefes”.

“Deixe disso, Fred. Não falei dessa maneira. Você olhou pelo lado torto”.

“Quando você falou foi pra sacanear. Conheço bem pessoas de sua laia, Wilburn”.

“Não falei por mal quando disse ‘me dê uma mão, aqui’. Estou com problema na contabilidade, é só. Queria uma ajuda”.

“VOCÊ É UM TREMENDO CANALHA, WILBURN! UM GRANDESSÍSSIMO FILHO-DUMA-PUTA!”.

Daí Wilburn partiu pra cima de Fred, que só tinha um braço e não teve como se defender.

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (12)

Conversa sensata e precisa

"Bulford, o chefe quer o dinheiro pra ontem. É bom pagar..."
"O que? Pare de dizer que minha irmã é uma vadia ou eu te mato, eu juro..."
"Sem essa de mais tempo, Bulford. Sam quer o dinheiro, e ponto final".
"Se continuar paguejando assim você não terá um bom Fim-de-Ano".
"Não temos tanto tempo assim. Sam precisa compra uma limusine nova".
"Foda-se se você não tem os U$ ...,. Vamos dentro de dois dias catar tudo o que tem..."
"Pare de falar que trepou com minha irmã".
"Ah, esquece, Bulford, você já é um homem morto".

Big Ass desligou.

"Eu mato aquela cachorra se tiver dado praquele traste".

sábado, 11 de junho de 2011

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (11)

Relato de um homicídio involuntário no 5º andar da rua Toulanes


Era um apê legal o de Brenda Lee. 5º andar. Cadeiras de palha. Mesa de centro. Sofá branco, com almofadas brancas, próximo ao janelão de correr. Vista boa.

Fui na frente com as chaves, enquanto Brenda guardava o carro. Iríamos fazer uns camarões empanados na manteiga. Algo fino uma vez na vida pro Otto Dusquene. O sol já ia baixando. Levei as sacolas pra cozinha. Botei o tinto no congelador.

Tudo certo. Voltei pra sala.

Aquelas almofadas na lateral do sofá eram convidativas. Cheguei perto e desabei. Daí ouvi o estalo. “Cleck!”. “Porra! Quebrei o cinzeiro ou o abajur...”. Olhei pro lado. A mesa lateral continuava intacta com seus objetos. Então, tive um palpite. Levantei. Só então a vi... Lá estava Penélope, a poodle neve de Brenda, com o pescoço quebrado, morta pelos meus 100 quilos promocionais. Eu a havia confundido com uma almofada. Ela ali, toda enrolada, dormindo profundamente. Bem que Brenda dissera que a cachorra estava sonolenta em razão de um remédio contra virose, ou algo parecido. Eu cometera um assassinato sob o sol - ou quase.

Precisava pensar... PENSE, DUSQUENE, E RÁPIDO! Segui a única ideia que me ocorreu na hora. Abri o janelão. Um vão largo. E atirei por ele o corpo inerte de Pê (era como sua dona a chamava na intimidade).

Só foi o tempo de me virar, colocar um sorriso relaxado no rosto e Brenda abrir a porta.

“E aí, gostou?”

“Dez, baby, dez”, fiz o sinal de OK.

“Já viu a Pê?”

Olhei pros lados. Braços abertos sobre o encosto do sofá.

“Ainda não. Onde ela está?”

“Pê! Cadê você?”.

Depois de procurarmos por cinco minutos, Brenda começou a se desesperar.

"Não estou encontrando...".

“Calma, vamos achá-la”.

Brenda teve um pressentimento ao reparar o janelão aberto. Foi até lá. Colocou a cara pra fora. E viu lá embaixo, entre os arbustos, uma coisa branca, imóvel.

“OH, MEU DEUS, PÊ! LÁ EMBAIXO!”

Olhei.

“Talvez possa ser”, eu disse.

Descemos as escadas correndo, sem esperar o elevador. Brenda abriu com um puxão a porta da entrada e foi pro jardim. Identificou e se debruçou sobre o corpo de Pê, alucinada.

“O QUE HOUVE? QUE SERÁ QUE ACONTECEU?"

"Só vejo uma possibilidade", falei.

"Qual?", disse Brenda com o rosto afogueado.

"Suicídio".

"O que?"

"Ou isso ou distração. Você disse que ela andava meio sonolenta. O janelão estava aberto. O sofá bem perto".

"Mas eu juro que deixei o janelão fechado quando saí".

"Quando cheguei estava aberto. Sentei justamente ali pelo vento".

Brenda baixou os olhos para Penélope, morta. Afagou-lhe a cabeça.

"Ela era tão... branquinha, que nem neve".

"Foi exatamente esse o problema".

Quase disse. Mas me segurei a tempo.

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (10)

O profeta nosso de cada dia

Ele passava quase todos os dias pela avenida, no meio da noite, gritando a plenos pulmões que o mundo iria terminar em poucos dias. "Vocês vão ver seus palermas. Ficam ajuntando dinheiro sujo, escroto, debaixo do colchão... VOCÊS NÃO TERÃO TEMPO DE GASTÁ-LO!"

Alguém gritava de um dos apartamentos.

"E o que você nos aconselha, Sulffock? Que a gente dê a grana pra você?".

Sulffock, de barba longa e cinzenta, roupas puídas, olhava para cima, tentava em vão achar o remetente da mensagem no meio das luzes acesas.

Não conseguindo, berrava:

"DEEM SEUS RECURSOS AOS POBRES DE ESPÍRITO! PARA QUE POSSAM SANAR SUAS MISÉRIAS E NECESSIDADES FÍSICAS ANTES QUE VENHA A CALAMIDADE TAMBÉM SOBRE ELES".

Um outro gritou.

"Acabe com essa gritaria, seu alucinado. Todo o dia é essa porra! São quase 11 da noite. Tem gente que precisa trabalhar amanhã. Vê se arranja uma sarjeta pra você se encolher e dormir".

"FALOU A VOZ DE UM PECADOR EMPERDERNIDO!", malhou Sulffock, desta vez identificando o dono da voz e apontando para uma das janelas onde se encontrava um gordo de 130 quilos, de camisa branca.

O cara ficou puto.

"FIQUE QUIETO! NÂO SE MEXA! VOU AÍ PRA LHE MOSTRAR O QUE É UMA CATÁSTROFE IMINENTE!", disse e saiu da janela.

Depois de procurar Sulffock durante meia hora pelos becos e vielas do quarteirão, o homem o encontrou dormindo como criança, numa manjedoura feita de pilhas de jornais velhos, que ele catava de dia para ganhar a vida e manter toda a vizinhança informada sobre os futuros e inadiáveis acontecimentos.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (9)

SORTE! Meu amor recluso...

Não jogo há um mês. As pedras me ludibriaram. Estou puto. Dei um tempo. Não adianta forçar a barra quando a Sorte – ou algo parecido com ela – não colabora. Como já comentei, faço uma aposta leve, por diversão. Uma vez ou outra arrisco uns trocados a mais. Nada desesperador.
O país não tem me favorecido. Os imbecis estão por aí coçando o saco e ganhando dinheiro. Cada coçada, dois mil. Como conseguem? Eu ainda encontro a porra dessa fórmula esquecida num balcão de farmácia, sei lá. É de impressionar como coisas boas acontecem a pessoas medíocres. Não precisam mexer um músculo e os bolsos já estão cheios de grana – não sei se obtida de maneira lícita ou ilícita, isto é com cada um.
Sempre tive algo semelhante à fé. Uma certeza, talvez. Certo otimismo escondido e indesculpável. Embora desanime no curso da obra, não sou daqueles que jogam a toalha no primeiro ou segundo round. Sou curioso. Quero ver como a coisa vai terminar.
Só estou dando um tempo.
Um dia, quem sabe, a Sorte entrará por aquela porta e sentará no meu colo.
“Ah, Dusquene, que bom que desta vez será com você”.
“Baby, eu nunca te vi, mas sempre te amei”, direi eu, original, passando o braço em sua cintura.

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (8)

Quem cuida dos pobres neste mundo infame?

os hospitais do país são matadouros públicos
onde os pobres chegam para morrer
em macas nos corredores,
em UTIs coletivas e úmidas,
não sanitizadas,
uma morte dolorida, aberta,
programada

como doentes internados não votam
os políticos os esquecem
os governantes os esquecem
os médicos os esquecem
a população os esquecem
o que os olhos não veem...
desaparece
foda-se!

(...)

“Mama Brown foi internada com uma infecção aguda no pâncreas”.
“É? Quando foi?”
“Foi ontem. Morreu hoje, às 10”.
“Puta-que-o-pariu! Mama Brown morreu?”
“Morreu, o enterro é amanhã, às 15h. Cê vai?”
“Sei não. Tenho umas entregas pra fazer...”
“Eu também tenho uns assuntos pendentes...”
“É, vamos ver se dá”.
“É, talvez”.

Pobre Mama Brown... que não tinha um ombro onde encostar a cabeça

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O poema ao rés-do-chão

Bukowski demorou
três décadas para colocar
o poema ao rés-do-chão
e ninguém compreendeu nada?
ele nos mostrou ser possível
fazer poemas de carne e osso,
que cheirassem à vida como ela é
por que jogarmos isso fora?

o poema é feito justamente
de ninharias, desse amontoado
de bobagens, da falta de sentido,
de nossa miserabilidade

melhor seria se o poema não existisse
mas ele é como pus
em espinha dolorida
e explode à luz do dia

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (7)

Escadas rolantes fazem mal aos olhos

Sou obrigado a ver dezenas de bundas murchas, ignóbeis, toda vez que subo uma escada rolante. Por isso, deveriam ser proibidas. Não as bundas, mas essas escadas. Não quero vê-las (as bundas), mas elas ficam enfileiradas e em ascensão na minha frente. Não há como não notar. Temos que cuidar dos nossos olhos assim como cuidamos dos genitais. Podemos sujá-los às vezes, mas não toda hora. E escadas rolantes sempre oferecem um espetáculo constrangedor.

O formato é variado. Existem os de bunda chapada ou reta, de bunda meia bomba, de bunda meia-taça (em que os pomos caem de repente e ficam ali, pendurados, como massa desprendendo) e os bundões - ou quase isso. Há também o bundão cavalar, megalômano, indecente. Tem de ser de ferro a privada para aguentar um desse tipo.

Todos os dias na volta do metrô sou forçado a me deparar com essa tragédia móvel. Mas há um consolo. Algumas mulheres têm atrás o que muitas vezes lhes falta na frente. E disso eu gosto.

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (6)

Um evento à luz do dia

ei, Joll,
o que você vai fazer agora?
afinal,
você não esperava por isso
não é, Joll?
eles não lhe deram estudo
só umas baganas
sem filtro
né, Joll?
por isso, teve que roubar
matar a fome
fazer a vida
Joll

puta-que-o-pariu
a bala foi um coice
no peito
do cara
tava ali à-toa
não tinha nada que tá ali...

não deu pra escapar, né Joll
você tem nervos frios
aguentou muita coisa
mas aquela
cusparada
não deu...
foi o cara é?
foi

por que ele lhe provocou?
ninguém sabe a paciência
de ninguém
ninguém sabe
não é, Joll?

Joll,
quais os seus planos na prisão?
quais os seus projetos para a Morte?
Alice talvez não possa lhe esperar
São 20 anos, Joll
20 anos
é demorado

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (5)

Negociação ao cair da tarde

"Estamos abertos à proposta, homem. Queremos sua alma.
Você sabe disso".

"Sei. E daí? Qual é a proposta?"

"A proposta é você quem faz".

"Tudo bem"

"Então, qual é?"

"Calma, estou pensando qualquer coisa".

"Não tenho o dia todo".

"Ei, cara, vá se foder. Você me aparece no
meio do quarto, enquanto entorno uma birita.
E me apressa? Afinal, quem é você?"

"Maxwell"

"Maxwell de quê?"

"Apenas Maxwell. Meu pai não gosta de sobrenomes".

"E quem é papai?"

"Você sabe muito bem quem é, Dusquene".

"É. Um filho da puta qualquer"

"Não fale assim dele. Olha o respeito".

"Ó, sua bicha, sarta fora. Não quero fazer
proposta nenhuma. Não vou vender minha alma".

"Estou pagando bem: mulheres, iate, grana preta".

"Tá bom. Aí vai. Vendo minha alma por SOSSEGO.
Mil anos de SOSSEGO".

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (4)

800 toneladas de merda

às 6 da tarde elas começam a descer dos apartamentos com seus cachorros
são gordas, magras, loiras, morenas,
jovens, de meia-idade, velhas,
todas levando pela coleira o totó

Os pimpolhos despejam 800 toneladas de merda
nas calçadas do país todos os dias,
apenas em três estados

as donas seguem pelas calçadas até 21 horas
seus cães emporcalhando o passeio
fodendo com a paciência que resta do sujeito
que volta de 12 horas de batente
pisando em merda
de animal

por que essas mulheres não arranjam
algo verdadeiramente decente
para ocupar suas vidas?
Bebam, façam sexo, vão ao cinema!
Mas matem seus cães!

"Vamos logo, Patrícia, mamãe tem que subir
pra ver o capítulo onde Mattison e Pamela
vão se envolver numa
noite daquelas"

"Vamos logo, Patrícia...cague, filhinha!"

E totó deixa o presente pro filho-da-puta
que teima em pisar em bosta de cachorro
todas as noites voltando do emprego de 12 horas diárias

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (3)

Às vezes é apenas um momento

é fácil perceber a rua sem saída
quando damos de cara com o muro
quando o estacionamento do supermercado
está lotado

é fácil ver quando as contas vencem
quando o saco de lixo vaza
o ralo entope
a merda flui

quando o cachorro fez as necessidades no carpete
quando vai ser um dia daqueles
e quando a dona de bunda e coxas tensas
está também num daqueles dias
fico quieto
bem quieto

é
é fácil
realmente
perceber as coisas
palpáveis, concretas
de aço

mas como não conseguimos compreender
com a mesma exatidão e urgência
A DOR DO OUTRO

se a solidão e a desistência
- e o suicídio -
estão bem ali
escancarados em cada rosto

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (2)

Premonição

às vezes me sinto uma merda
boiando na lagoa
essa guerra ninguém vence

a Morte vai pernoitar em minha cama
vai sorrir para mim
estalando os lábios de puta
"Dusquene, só eu sei quanto tempo lhe resta. Não quer saber?"
"Não. Não me importo", eu direi.
"Você é realmente estranho. Muitos dariam a vida por isso".
"Não sou curioso. Somente com os meus testículos, que inflamam, às vezes..."
"Tá vendo. Próstata, meu caro. É sempre um bom motivo".
"Foda-se. Não quero que você me diga nada. Estou confortável com a minha ignorância. Cai fora!"
"Durma bem, Dusquene".

E a Morte sairá pela janela, envolta numa névoa cinza.
Não sem antes olhar para trás... e piscar divinamente.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

A merda nossa que vaza todos os dias - escritos de Dusquene (1)

99 por cento

99 por cento da humanidade me incomoda
não me interessa
- a China com seus olhos cortados não me interessa
- a Índia com seu povo pardo não me interessa
- a Alemanha não me interessa
- o Tibete, muito menos

milhões mancham a paisagem
com seus recalques
conformismo e
ausência de coragem

os homens nos escritórios,
- existem multidões de pessoas em escritórios
e bancos e conglomerados -
vertem negócios
- limpos ou sujos, tanto faz -
e chamam esse trabalho de vida

tudo bem: tomam seu uísque no final da noite,
com boas mulheres e cama larga

mas, sinceramente,
essas pessoas também
não me interessam nenhum pouco
aliás, me causam certa aversão

assim como as estantes cheias de livros mortos
de romancistas mortos, de poetas mortos
(muitos mortos também fisicamente)

jovens,
cuidado com os literatos
rasguem os literatos

leiam London, Kerouac, Fante e Bukowski
e um pouco do Uivo do Ginsberg
esses caras confrontaram a CICATRIZ

leiam os que ousaram romper as amarras
e escrever sobre a vida real (sem subterfúgios)
escrever sobre os azares cotidianos

esses grandes desbravadores
escritores que valem a pena ler

- os literatos?
que sejam lidos pelas traças

assim como os vermes lerão
minuciosamente
os cadáveres impecáveis
dos homens dos escritórios

O torpor de minha mente vaga

“Vai dar certo. Sobe aqui”
“Mas aí?”
“É”
Vicky obedeceu.
“Não. Eu não aguento. Fica você”
“Vai. Vai. Vaiiiiii....”
“Puta-que-o-pariu, a bunda... Não sinto minha bunda”
“Que é que deu na sua cabeça para trepar num depósito de gelo?”
“Tesão. Então? Vamos tomar uma ducha?”

Sem título VIII

o poema não muda nada
mas fortalece mais meus alicerces
não muda caras, o tempo da viagem,
não muda calçadas mal feitas
não muda nossas chances
mas me tira do ramerrão
é o meu combustível para avançar
mais algumas milhas,
sem o poema seria mais difícil
mais desanimador, terrível

eu preciso do poema
para me safar, para respirar
para não ter que dizer todo dia
a alguém: "vá à merda, meu chapa".

terça-feira, 7 de junho de 2011

Bird

disseram que quinze, no máximo 20 pessoas, o viram
o pássaro nunca pousou perto do muro
uns viram o pássaro voando entre as árvores
num dia frio e de vento

uns dizem que é azul, outro vermelho, outro amarelo
outros afirmam que é creme com um topete roxo
outros garantem que ele não existe
eu mesmo nunca o vi
e você?

pássaro, pássaro, pássaro
pássaro, pássaro, pássaro
pássaro, pássaro, pássaro
pássaro, pássaro, pássaro
vem logo
pássaro
do inferno

Por que comigo, meu Deus?

sempre acontece comigo...
ontem no metrô uma dona se levantou
bem na minha frente
e começou a pregação
a falar de Aids e seus perigos
da infidelidade no casamento
de divórcio, de como educar filhos,
de castigos corporais,
de fé ou falta da mesma

o discurso durou duas horas
a voz da mulher era estridente
e eu estava de ressaca
até que olhei pra ela
e ela percebeu que era hora de parar com aquilo

não fui eu só quem olhou
uns dez olharam e, se ela não parasse,
haveria o primeiro assassinato no metrô
desde a sua inauguração, eu acho

sempre me pergunto...
por que as pessoas se julgam eleitas?
por que não se encolhem em sua insignificância, meu Deus?
por que não vão servir longe? Em um exército de salvação qualquer

realmente
eu não preciso disso às 8 da manhã, não mesmo
eu preciso é de silêncio, peço somente um silêncio ostensivo
para um homem cujos olhos doem ao contemplar tamanha luminosidade

segunda-feira, 6 de junho de 2011

VOICE

“O problema é a voz”

“O que tem a voz?”

“É lenta demais. Uma voz arrastada, de língua cansada”

“Mas Camille tem um corpão. É toda sexo”

“Sei disso”

“E então?”

“Mas a voz não encaixa e, na hora, sabe como é...”

“Você brocha?”

“É”

“Mas por causa da voz!”

‘Ééééééé!”

“Pede pra ela ficar quieta”

“Mas o pior é que eu conheço a voz. Lembro do seu potencial”

“Como é que ela fala?”

“Ééééécoomoseaacooisafoosseemmmaaarcharreduuziiida”

“Você não tem conserto, Dusquene”

“Nem a voz. Nem ela”

Meu elo com o infinito de ser ninguém

1
É preciso ter paixão ao escrever. Mas repulsa pela humanidade.

2
Quando vejo uma mulher cuidando de criancinhas, brocho.

3
Morrer não é nada diante do que passamos do nascimento até subirmos no trem, de volta.

4
Certamente ninguém me falou que seria assim. Se falasse, eu não viria.

5
Certas mulheres não são para certos homens.

6
Quem ama, melhora. Ou fica na mesma.

7
Foder é uma confissão de dependência, quando se ama.

8
Cachorro pode cheirar a bunda do outro, mas ninguém cheira a minha.

9
Para se manter fiel só saindo com outras mulheres.

10
Tristeza em demasia sempre me dá vontade de rir.

ECCE HOMO II

animal urbano
não sei viver longe dos edifícios,
do concreto, do alumínio, das estruturas,
do tumulto da metrópole organizada,
longe da vida em sua aspereza,
isolado da urgência das ruas,
mas não aprecio gente

sou o que sempre fui
e me aproximo conscientemente
dos velhos edifícios como lâminas frias de memória
e não há culpados – ninguém –
só existe vida e seu enorme desamparo

eu sei
eu, o velho Dusquene,
eu que escrevo enquanto bebo
eu e minha experiência de bares
eu que não enxergo propósito ou compaixão
jamais vou conseguir me desvencilhar
dessa roda que desce, desce sempre,
e me faz comer bosta

domingo, 5 de junho de 2011

Até onde a vista alcançar

lembro dos anos
das luzes dos anos
porque, se eu não gravei os rostos,
gravei certamente as luzes dos ambientes, das festas,
as luzes de um hospital, de um bar,
de uma farmácia

as imagens estão claras e firmes em minha mente
em pastas de arquivos, que posso rever quando quiser
sei os lugares, mas isso não é importante, realmente,
sim o que vejo

estranho
não me lembrar das pessoas, mas dos ambientes
não me lembrar de texturas específicas, do gosto dos alimentos,
mas somente das luzes abrangendo tudo
como um grande sonho de passado

acho que basta isso, é o suficiente para mim
para muitos, não

Sem título VII

sem esses anos de trabalhos mentais eu seria menos que um dejeto
foram esses trabalhos duros que me salvaram de certa espécie de mediocridade
a áspera monotonia moldou meu cárater
me tornou mais rijo, mais consistente,
mais compenetrado e impaciente,
isso e alguns amigos severos...

os mais de 15 trabalhos que tive me educaram no esquecimento,
no automatismo, no cansaço, na dor, no ódio,
fizeram-me insensível como um monolito
medonho e triste

Mother, father, sweet home

"Mamãe, aí o gatinho, aí..."

"O gatinho vai atrás de quem, Liza?"

"O gatinho? O gatinho, assim, ó..."

"Não é o cachorro?"

"Não confunda a menina, Eldon"

"Mamãe, o gatinho? É, o gatinho... Aí a gatinha foi..."

"Tá vendo, ela já sabe das coisas"

"E o ratinho, Liza? Onde está o ratinho?"

"O gatinho? Tá ali... O gatinho? É... O gatinho? Aí ele foi... Aí, a gatinha...".

"Pelo visto isso vai até amanhã", disse Eldon, voltando a ler o jornal.

"Deixe a menina, Eldon"

"O gatinho? O gatinho foi... dormiu..."

sábado, 4 de junho de 2011

Sem título VI

Há uma passagem de bastão bem clara na novela e poesia norte-americanas. A beat generation de Kerouac, Ginsberg e Burroughs desagua no formidável individualismo niilista de Bukowski. Antes, para haver Bukowski, teria que ter ocorrido Fante. E houve. Como antes da beat generation houve a necessidade de Thoreau, Whitman e London. Tudo está dito, mas os bons tempos não voltam, nunca.

Os 30 melhores poemas de Otto Dusquene, até agora - por ele mesmo (30)

Sempre acho a morte onde mais espero

duro é aguentar a obviedade
99% do que as pessoas dizem não são aproveitáveis
as vidas de milhões não são aproveitáveis, são cracas no asfalto quente
e a esperança de que tudo pode melhorar é um engodo maníaco
e a maior dificuldade é que as pessoas não enxergam isso
e acham suas vidas magníficas, plenamente toleráveis

faz duas décadas que não compro um livro sequer
porque sei que não há um autor que preste,
que possa me dizer, de uma maneira diferente,
aquilo que já assimilei nos meus 47 anos de estrada

antes, bem antes, li o suficiente para saber que agora não existe mais nada
só frouxidão, câncer e linhas mortas
nas bibliotecas públicas

mas tenho que seguir de algum modo: então escrevo para mim
é um mecanismo particular para escapar do vagalhão de bosta
da doentia alegria, da fé insana, da estupidez espectral
do mundo

Os 30 melhores poemas de Otto Dusquene, até agora - por ele mesmo (29)

Cotidiano

encontrar culpados é fácil
mas a situação se complica
quando o ambiente é o mesmo
quando as caras e os corpos
são os mesmos e as expectativas
diminutas

certamente isso não ajuda muito...
enquanto o preço da gasolina não se estabiliza

então,
suamos nossos trocados, tentamos tomar fôlego,
escapar da ARMADILHA, do GRANDE MAL,
do MONSTRO cotidiano do TÉDIO

inventamos histórias, escrevemos,
conversamos, trepamos,
mas nada disso importa muito
até nossa morte

então,
esgotadas todas as chances,
rasgado o pano verde, perdidos os dados,
nos damos por vencidos
e vamos ao primeiro bar para o último drink,
com o pouco de hombridade
que nos resta

Os 30 melhores poemas de Otto Dusquene, até agora - por ele mesmo (28)

Bean Jim

Bean Jim foi ao mar
Bean Jim foi à merda tantas vezes
Mas partiu há uma semana, foi ao mar
Bean Jim em sua longa marcha
Encontrou Lucy num meio-fio
Perdida entre caules de flores vivas
De um vestido leve
Pensou que daria certo...

Bean Jim chamou Lucy para o mar
Mostrou a Lucy conchas, peixes e redes
Lucy sorveu a maresia
Bean Jim construiu cabana
Buscou na mata frutos
Mas, depois, não quis ficar
Bean Jim é interior
Bean Jim
é

Mas Lucy, a escrota, ficou...

Os 30 melhores poemas de Otto Dusquene, até agora - por ele mesmo (27)

enquanto ela ainda dorme...

estamos muito sós a qualquer hora
mesmo com quilos de ideias na mente
mesmo com o rugir da estupidez planetária
mesmo com essa bagagem de vida
mesmo com tudo isso – e um pouco mais

preciso desse isolamento?
preciso mesmo é da sala do apê iluminada,
dos móveis práticos, maleáveis,
de uns tira-gostos me esperando,
umas latas de cerveja no congelador,
preciso um pouco disso tudo

bom mesmo é voltar para casa
ver Gill dormindo tranquila
ronronando seu ronco
de gata em lençol
de linho

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Os 30 melhores poemas de Otto Dusquene, até agora - por ele mesmo (26)

a fé que os anima não é de modo algum a minha

as ruas estão cheias dos imbecis de sempre
sustentando vidas ordinárias
seus rostos crus são a prova viva
de que algo vai mal, muito mal
em tudo

mulheres pavorosas saem à caça
sem qualquer possibilidade de êxito
moscas sorvem em bordas de copos
restos de saliva e cerveja
o lugar rescende
aberto

antes que a noite termine
até o fantasma do velho Janso
chega, senta, ri e pergunta:
“o que há de novo, filho?”

Mais uma topada no velho Finnegan´s

“Ei, Dusquene, eu não sou fiel nem à cadela da vizinha”

“Tudo bem, Foster, continue assim”

“Eles podem ser. Ficarem casados por 30 anos. Eu não!”

“Certo. Agora me deixe beber em paz. OK?”

“Você não vai com a minha cara, não é, Dusquene?”

“Nem um pouco. Já está avisado. Suma”

“Você não quer é me pagar uma bebida!”

“Serve um drink aqui. E Foster... Suma depois disso”

“Eu não vou a lugar nenhum, Dusquene. Ninguém me compra com um drink”

“Certo, Foster. E com dois?”

“Com dois eu faço o que você quiser, Duc”

“Tudo bem, velho. Tome mais um drink e suma. Agora falo sério”

Foster bebeu o segundo drink, bateu no meu ombro.

“Você é um bom sujeito, Dusquene”

“É, infelizmente eu sei disso”

Os 30 melhores poemas de Otto Dusquene, até agora - por ele mesmo (25)

Stand by

desisti de esperar a primavera
nem em Praga ela se revela
eu agora não desejo nada, realmente não preciso de coisa alguma
a não ser manter este corpo dolorido e bêbado no sofá
descanso merecido para esta carcaça
após 28 anos de trabalhos infames
mentalmente brutais, sem razão aparente

agora junto-me à humanidade
sem crédito, sem mínima expectativa
junto-me aos milhões de homens comuns
que se incapacitam diariamente
suprindo necessidades alheias, industriais, comerciais
com a mais completa escuridão da alma

estou com vocês
somos, hoje, iguais
vou junto
mesmo refestelado neste sofá carcomido, feliz,
sem margaridas mal servidas

Os 30 melhores poemas de Otto Dusquene, até agora - por ele mesmo (24)

estamos profundamente sós no mundo

Para que escrever poemas?
80% da população só está interessada
em comer, cagar, rir de qualquer coisa,
ver TV ou pornografia

Para que dizer
coisas que ninguém quer saber?
Falar das misérias cotidianas de cada um
que realmente
desconfortam qualquer um

Milhões de pessoas sofrem de uma idiotia extrema
milhões percevejam
- é isto mesmo: percevejam
soltam um cheiro repugnante de
rotina e normalidade
que nauseia

É bom que você saiba, camarada,
estamos profundamente sós,
incrivelmente sós agora,
para dizer
qualquer coisa
mesmo a mais insignificante
que seja

Os 30 melhores poemas de Otto Dusquene, até agora - por ele mesmo (23)

AUTONOMIA

Um poema de Otto Dusquene

1

Marion Manton morreu depois de dois meses e meio,
de um câncer terminal e público. Morreu gritando, gemendo e
definhando no apartamento 208-A, da Danton Street.
Tinha 26 anos. Não teve AUTONOMIA para manter-se viva.
Buff Lindener morreu há menos de um mês,
de edema pulmonar, caído entre duas máquinas de lavar,
às três da tarde, no porão do edifício onde morava.
Idade: 57. Complicação derivada da falta de AUTONOMIA para permanecer vivo.
Dick Craigton faleceu após agonizar durante duas horas,
com dois tiros nas costas. Todos passavam por ele,
sem dar a mínima. Idade: 16. Causa mortis: ausência de AUTONOMIA.
Ruth Stein morreu engasgada com um pedaço de carne.
Sufocou aos 72 anos num restaurante da Limonae.
Havia quarenta pessoas no local. Ninguém notou o episódio.
Não teve AUTONOMIA para desobstruir a traqueia.

2

John Stanley tentou salvar sua filha,
envolvida em um acidente de carro,
quando voltava do trabalho.
Ele passou na via por acaso
e viu a filha presa nas ferragens.
Em desespero, tentou tirá-la do veículo.
Foi imediatamente preso pelos controladores de condutas.
Oito meses depois seu caso foi levado à Suprema Corte.
Foi condenado à prisão perpétua. Faleceu em 2034.

3

Hannah, sua filha, morreu uma hora após o acidente.
Não teve como sair do carro com uma perna e quatro costelas quebradas.
Pulmão perfurado, hemorragia interna.
Muito embora, é preciso destacar, os camareiros
estivessem de plantão a dois metros de onde estava,
esperando que ela fosse até eles, para encaminhá-la
a uma das UNIDADES DE SALVAMENTO,
as quais as pessoas têm direito uma única vez na vida.

4

Quem não tem condições de se safar por conta própria
morre não de doença, acidente, assalto.
Neste mundo todos morrem por não ter AUTONOMIA.
Não é insensibilidade, somente a nova ordem das coisas,
nascida naturalmente... roboticamente... inoxidavelmente
metodicamente incorporada ao dia a dia das pessoas.

5

No conjunto de edifícios cinzas da Área 159-B,
as vidraças balançam nos caixilhos,
com a ventania horizontal,
que já entortou as lâminas de dois dos quatro
outdoors colocados pelo governo,
bem diante dos blocos de apartamentos sem pilotis.
Neles está escrito, em letras garrafais, o mesmo aviso:
“É TERMINANTEMENTE PROIBIDO AJUDAR QUALQUER INDIVÍDUO. AUTONOMIA É REQUERIDA SEMPRE. EM TODAS AS SITUAÇÕES.”.
Logo abaixo, em letras menores, vermelhas, lê-se:
“Quem auxiliar um incapaz será sumariamente preso e julgado sob as leis de AUTONOMIA.”.

6

John Smith, morador do apartamento 227, da Torre C, da Área 159-B,
tentou sabotar essa diretriz, participou de uma rede clandestina de auxílio...
Foi torturado, imolado tão brutalmente
que logo revelou os nomes dos quatro outros integrantes da organização.
As cinco pessoas que, em razão das ações da rede, tiveram uma segunda chance de vida, foram assassinadas (respeitando as mesmas condições em que morreriam se não houvesse ocorrido qualquer intervenção externa).
“AUTONOMIA jamais, jamais deve ter compaixão. Lembre-se disso. É a seleção natural, em último caso o destino, que separa os fortes dos fracos.”.
Os dizeres acima estão espalhados por imensos cartazes. Em todo o país.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Os 30 melhores poemas de Otto Dusquene, até agora - por ele mesmo (22)

No more, Blackbird

nem sempre vou bem comigo mesmo
geralmente isso acontece a maior parte do dia
e quando não tem qualquer bar por perto
a coisa fica realmente tensa

vejo tanta gente medíocre passeando com os seus carrões
gente que nunca leu Bukowski, Fante, Kerouac, Corso
gente de grandes bundas gordas arrotando o último
benefício ganho
gente podre
em si
gente

nem sempre acontece de eu querer sair à rua
- isso sempre ocorre, geralmente quando acordo
mas há a obrigação do trabalho insosso,
envolto no dia abrasivo, solar

meus pés doem,
meus ossos doem,
o estômago, os rins, o pâncreas,
as articulações cansadas do mesmo moto continuum
de 27 anos

tudo somado hoje
não dá sequer uma sombra de homem,
que se mescla a pessoas satisfeitíssimas
com suas novas aquisições e empregos fáceis,
igual entre os parvos

Os 30 melhores poemas de Otto Dusquene, até agora - por ele mesmo (21)

por que não desviamos o olhar uns dos outros?

seguimos porque seguimos,
por necessidades aparentemente inadiáveis,
acordamos nesta manhã cinzenta
nesta cidade cinzenta
que é ...

vemos novamente esses rostos
cheios de insignificância no metrô.
ansiamos por uma revelação,
em meio a toda essa horda,
e que jamais virá

por que tudo isso?
para que tudo isso, meu Deus?
tanta gente abarrotada e inútil
em vagões fedendo a gente

não gosto de gente
sou antissocial por natureza
não gosto de que gostem de mim,
que falem comigo
não quero realmente que gostem de mim
isso me faz comum,
comum demais,
me faz mal

já vi sujeitos desesperançados
entortarem a viga
por não encontrar saída
- ah, essa ponte tão convidativa...

mas eu não sou um deles.
se cheguei até essa marca de cal
quero ver a linha de chegada.
só preciso de um pouco mais de coragem

mas não quero
que me apoiem,
que me incentivem,
que torçam por mim.

deixem que eu calce meus sapatos sujos
vista a camisa mal passada...
enfim, que eu levante,
simplesmente só,
meu fardo
nesta manhã
particularmente cinza

Os 30 melhores poemas de Otto Dusquene, até agora - por ele mesmo (20)

Ei, cara, vá para o inferno... e leve sua mãe

Eu não ando legal, mano
Não brinque comigo
Não ando bem nessa selva de pedra
Realmente não estou confortável

Eu deixei de fumar há onze anos
E por isso ando nervoso,
facilmente irritável

Hum.... Huuummm...
Mas aquela dona de peitos imensos
Aquilo está me deixando easy
É, legal,

Isso, e o uísque,
A minha fé nos homens é mínima, risível
Mas não a maldita sorte dos diabos
Quem sabe? Vamos apostar um pouco...
Leve

Muitos são a pior imagem de si mesmos
ééé -
e não podem ir mais fundo no poço,
pois já estão nele
até o umbigo
ou em um nível
mais abaixo
cheirando bosta

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Os 30 melhores poemas de Otto Dusquene, até agora - por ele mesmo (19)

Sensação de merda no sapato esquerdo

é preciso sinceramente que haja algo melhor que isso,
do que observar esses rostos óbvios, frequentes,
à espera do próximo pagamento,
do próximo telefonema,
da próxima viagem interestadual,
do próximo fim de semana,
do próximo reality show,
para que eu consiga me apossar
das sobras de mim

não quero ter contato com 99% da humanidade
mas estou cercado desses 99%
sou um ser solitário e mal-humorado
não me dou bem com gente
só com cervejas e jogo de números

a cada dia a tensão aumenta
não consigo sequer olhar para seus rostos...

mas sempre há a perspectiva
da próxima viagem interestadual,
do próximo fim de semana,
do próximo reality show,
do próximo telefonema,
para que, enfim, esses 99%, envolvidos pelas novidades,
desapareçam por algumas esplendorosas horas

Eu só acredito naquilo que meus dedos tocam

1
A pior invenção do homem é o próprio homem.

2
Se o ser humano tivesse algum valor, não existiria tanta gente no mundo.

3
A obrigação de ser decente me assusta.

4
Não tenho paciência com mosquito, imagine com pessoas.

5
Qualquer pensamento benévolo é anormal em um ser humano.

6
A normalidade não existe. O que há são instintos controlados a ferro e fogo.

7
Sem resignação não há saída.

8
Festejo somente quando não me convidam para algum funeral.

9
Sim, é preciso acreditar de alguma forma, até mesmo acreditar na existência da própria fé.

10
Só os dementes se dão algum valor.

Os 30 melhores poemas de Otto Dusquene, até agora - por ele mesmo (18)

O que rescende a fósforo e gás

essa fortaleza foi erguida aos poucos
ao longo dos anos na planície
ouvindo o ranger da maquinaria
vendo a moedura de carnes e ossos
presenciando o amargor do povo

minha rigidez,
meu escárnio, meu desprezo
foram construídos lentamente
vendo o que fazem os homens
para se manter com o nariz
acima do nível da merda

essa construção
do que hoje eu sou
foi feita de sensibilidade cortada
em tiras, jogadas ao chão

assim,
se sou o que sou agora,
é porque vocês me fizeram pior do que eu
me imaginava

Os 30 melhores poemas de Otto Dusquene, até agora - por ele mesmo (17)

Sally Rose

os seguranças do Marino’s
encontraram Sally Rose,
depois de uma procura de duas horas,
morgada, pernas estiradas,
docemente abraçada a uma privada,
cabeça emborcada para o vaso, escorada no assento,
vômito grosso no vestido branco

bebera seis copos de tequila
na festa de Fim de Ano da empresa
big boss não gostou especialmente
dos xingamentos antes do baque

Sally ficou, assim, malvista na corporação
por ter cheirado, durante duas horas,
literalmente, a merda alheia

Os 30 melhores poemas de Otto Dusquene, até agora - por ele mesmo (16)

Butterfly

uma borboleta negra e laranja
pousou em mim
uns podem ver nisto
um milhão de significados

para mim
aquilo não passa de
duas folhas que balançam
- comida de pássaro

entenda
não há significado algum
no aterrissar de um inseto
em você
ele apenas queria
sorver uma gota de suor de seu braço,
talvez

pare de ver nos acontecimentos
presságios erradios
tome um trago
trepe

meus olhos céticos
observam com a mesma dura indiferença
o propósito que somente os iniciados enxergam

Os 30 melhores poemas de Otto Dusquene, até agora - por ele mesmo (15)

Por que não antes?

ela não veio como eu esperava
mas em uma curva da existência
quando não havia mais credo,
esperança

quando veio, pensei ser tarde
que minha mediocridade
não se encaixava em sua beleza
esplêndida

quando surgiu, o que me restava
dizer? Mostrar?
O que fazer para ocultar
minha insignificância?

são mulheres assim
que tornam os homens melhores
que fazem os homens duvidar do nada
antever possibilidades,
mas "por que só agora?"

ela veio me resgatar
do abandono
sedar a dor
secar meus olhos
dar algum sentido
a tudo

veio simplesmente,
trazer uma palavra calma, cuidar de mim,
"chegar de beber, Duc, vem dormir, querido"