quarta-feira, 15 de julho de 2015

Sensação de merda no sapato esquerdo


é preciso sinceramente que haja algo melhor que isso,
do que observar esses rostos óbvios, frequentes,
à espera do próximo pagamento,
do próximo telefonema,
da próxima viagem interestadual,
do próximo fim de semana,
do próximo reality show,
para que eu consiga me apossar
das sobras de mim

não quero ter contato com 99% da humanidade
mas estou cercado desses 99%
sou um ser solitário e mal-humorado
não me dou bem com gente
só com cervejas e jogo de números

a cada dia a tensão aumenta
não consigo sequer olhar para seus rostos...

mas sempre há a perspectiva
da próxima viagem interestadual,
do próximo fim de semana,
do próximo reality show,
do próximo telefonema,
para que, enfim, esses 99%, envolvidos pelas novidades,
desapareçam por algumas esplendorosas horas

A merda nossa que vaza todos os dias


o diabo é
             o ramerrão
        a falta de perspectiva
                  de grana
as solas dos sapatos gastas
as meias furadas nos dedos e nos calcanhares
                                   o sem saco de
comprar meias e sapatos

o diabo é
             o sol, o maldito sol rompante,
             o café oxidado
                                 na térmica
                                 de quinta
a danação das ruas
            a vontade de ver ninguém
a ressaca bruta
                     o bolor no armário
                                 e o periquito verde
do vizinho
              o pane mental, enfim,
a perda de sensibilidade...


o diabo é isso
                    a uniforme percepção
                    social
               denunciando sonhos
as pessoas do metrô
             com seus rostos vencidos,
banidos, inúteis,
                                  a morte anunciada
                       em tudo

já no apartamento
         depois de um dia morno
ligo a TV
            desligo
- esqueço que não há vida na TV -

é tarde,
camarada,
muito tarde para qualquer um
salvar-se

Escadas rolantes fazem mal aos olhos


Sou obrigado a ver dezenas de bundas murchas, ignóbeis, toda vez que subo uma escada rolante. Por isso, deveriam ser proibidas. Não as bundas, mas essas escadas. Não quero vê-las (as bundas), mas elas ficam enfileiradas e em ascensão na minha frente. Não há como não notar. Temos que cuidar dos nossos olhos assim como cuidamos dos genitais. Podemos sujá-los às vezes, mas não toda hora. E escadas rolantes sempre oferecem um espetáculo constrangedor.

O formato é variado. Existem os de bunda chapada ou reta, de bunda meia bomba, de bunda meia-taça (em que os pomos caem de repente e ficam ali, pendurados, como massa desprendendo) e os bundões - ou quase isso. Há também o bundão cavalar, megalômano, indecente. Tem de ser de ferro a privada para aguentar um desse tipo.

Todos os dias na volta do metrô sou forçado a me deparar com essa tragédia móvel. Mas há um consolo. Algumas mulheres têm atrás o que muitas vezes lhes falta na frente. E disso eu gosto.

Indizível atropelo de fatos e provas

deixe-me
ficar
no quadrado
seco
do apartamento

o teto
em chamas,
a vida,
em chamas

deixe-me
lhe dizer
o que nenhum
filme de TV
diz

deixe-me
congratular
com estrelas rubras,
com uma sombra
na calçada,
bêbado de vinho,
cheio das ciladas
dos estábulos

deixe-me rosnar,
sangrar, o feixe de nervos,
a pele seca, boca em carne viva

deixe-me
severamente,
densamente,
plenamente,
lhe ver como
você finge
ser


Tempo, tempo, mísero tempo para qualquer fato


vá devagar, camarada,
a vida não
precisa
ser engolfada
num só golpe
é preciso
calma

relaxe,
beba uma cerveja,
olhe lentamente
uma bela mulher
passando
na rua

desligue-se
um pouco da
miserável rotina,
do vil metal,
da chave perdida,
do gato que perdeu
o passo do rato,
do ódio
sem
nexo

e tome um
gole, um gole
apenas
basta

Tome duas aspirinas e um antiácido


um restaurante
na plataforma,
duas ou três garrafas
de cerveja
já vazias 

aquela mulher ali
parece se importar
comigo,
parece que
me conhece,
mas eu não
sei de onde
ela é,
de onde
vem

só percebo
o seu rosto
como
um pássaro
que surge
na vidraça
embaçada
e logo
desaparece
na
neblina