sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A melhor hora da cidade em que ela vive

vejo a cidade morta às quatro horas da manhã
as ruas parecem a pele de um imenso anfíbio negro-cinza
pisada por bêbados erradios e sujos de merda
estou bebendo um tinto de qualidade; e isto é bom
vejo os carros na pista, ao longe, na hora plena
a melhor hora da cidade: quando todos dormem e
e ela, enfim, pode respirar, ficar em paz, livre de
passos, cusparadas, gimbas de cigarro, vômitos...
existe a possibilidade de um assassinato, logo,
mas isso sempre há em qualquer lugar do mundo
nem falo das sirenes de bombeiros e polícias
nem digo do meu incômodo de fazer parte disso...
a minha bebida me basta; nada hoje de rostos
e vozes humanas: só quero esse silêncio, imerso
em álcool, como uma quietude de mim mesmo agora

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A fé desanima, às vezes, só às vezes

"A montanha está em você, Dusquene".
"Que troço é esse?"
"Você precisa trans-cen-der. Ir para a luz..."
"O caralho desse negócio. Sou mais ficar no fundo do bar, bebendo..."
"Deixe eu tocar na sua testa a procura de um sinal".
Olhei seco pro porra-louca, ele entendeu.
"Você está cheio de raiva, Dusquene. Isso é mal..."
"E você está enchendo o meu saco, e isso é bem pior".
Tomei um gole e levantei.
"Será que não há um bar decente nesta droga cidade pra se beber em paz", sai pensando e pisando duro, olhando o cu das donas que passavam.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Lili Bell

Lili Bell, meu amor, não chore
a vida é uma escrotidão sem fim,
mas não dê o braço a torcer,
não mostre a ninguém sua grande mágoa,
senão os abutres caem matando
em cima de sua carcaça
cheia de álcool e dor
nesse quarto de quinta
sob o sol fervente

Aguarde uma boa temporada
que não virá tão cedo - sabemos disso,
envie um postal para a mãe no Alabama
dizendo que está tudo OK, por enquanto,
e que você tentará algo mais por aqui
um sonho qualquer esquecido no fundo da gaveta
ou de um puteiro em cima de um bar

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O meu companheiro em desagrado

"Pro inferno, Dusquene"
O diabo me intimará
eu continuarei a beber meu drink, ainda em casa,
sossegado

"Já é hora de termos uma conversa séria, amigo"
"O que?! Você está me desafiando"
"Pode-se dizer que sim"
"Você não tem nenhuma carta na manga. Você teve uma vida de merda"
"Mas a sua não é lá essas coisas"
"Eu sou o demo".
"Hum, camarada, perto do que eu já vi nessa vida, você está mais
pra madre Teresa de Calcutá"
"Embrulhe seus troços e vamos"
"Para onde?"
"Para baixo, ora".
"Não dá pra adiar até segunda? Hoje tenho um compromisso com Liv, no Frank's"
"De forma alguma"
"Ela tem uma bela bunda. Cê sabe?"
"Hum... Acho que dá pra negociar um prazo"
"Então, ao Frank´s?"
"É, pode ser, ao Frank's"
Levantamos e saímos, bons amigos

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A confiança e a serenidade em plena luz, na varanda

"Você não sabe o que fiz ontem, Lilly". "Que foi, Timothy". "Matei um canário". "Como?!". "É, ele fugiu da gaiola, sabe. Foi parar debaixo do sofá". "Mas...". "Minha mãe pediu para eu pegá-lo. Enfie a mão e peguei ele. O canário amarelo, na minha mão". "E como foi que....". "Daí não resisti. Lá mesmo, com a mão ainda escondida, apertei forte". "Seu filho-duma...". "Senti o corpo do bicho endurecer. Morreu rápido, eheh". "E sua mãe, o que disse?". "Quer agora um periquito. Ela não ia muito com canários".

Em que eu coloque e você goze

Otto Dusquene, você está ficando velho, camarada,
47 anos é bastante tempo
na planície

tanto tempo convivendo com gente
e você ainda está vivo, é surpreendente
não ter quebrado

você tem as suas estratégias: o convívio restrito, mínimo,
a falta de amigos, essa é a sua melhor qualidade,
Dusquene

e hoje é sexta-feira e os bares estarão cheios de porra nenhuma
e as mulheres estarão também ali, umas bem feias,
horrendas, indescritíveis e tristes

mas você achará bom o ambiente, com um drinque na sua frente
e uma vaga possibilidade de sair de tudo aquilo, bêbado,
e logo

Lilly Bill

Lilly Bill quis crescer e acabou na sarjeta
Ninguém amava a Broadway como ela
Mas acabou na sarjeta
vomitando sonhos indefesos
enquanto, longe, ouvia-se os gritos
de alguém desafiando o nada

sábado, 8 de outubro de 2011

Um trago a bem do dia triste

tudo isso valeria a pena
se nós soubéssemos
um pouco mais das coisas

ai regularíamos a mão
iríamos mais devagar ou não
- ou beberíamos mais,
quem sabe?

o problema é justamente esse
não sabemos de nada, nada pelo menos que valha a pena,
realmente, saber

só lidamos com contas, caixas, cachorros,
a eterna crise do capital,juros, compras,
mesas de bares

não, mesas de bares são importantes,
de alguma forma

mas não sabemos, enfim, o ESSENCIAL:
por que os dados são lançados
e o valor da aposta de cada um,
nunca saberemos

e o que nos resta?
não sei você, mas vou agora tomar uns tragos no Frank's
apesar dessa chuva grossa que não para de despencar

domingo, 2 de outubro de 2011

Caledônia

Fillgow, o pistoleiro, desta vez cai. Morre na tarde rubra, em meio a cactus e folhetins de cowboys. E então esperaremos que ele renasça nas velhas páginas de gibis esquecidos nos fundos de gavetas.

"Ele não virá, Gillmore".

"Virá, sim".

"O gibi deste mês já foi lançado".

"É uma merda, vou ver com meu pai se ele acha um novo no almoxarifado".