domingo, 31 de maio de 2015

Um amor

"Candy voltou", disse seco Ellfroy. Murray fechou a cara. "Como essa puta pode voltar depois de tudo que me fez", disse para si mesmo. "Calma, não faça nada de que você venha a se arrepender depois". "Ela não merece estar aqui. Deixou o menino quando ele tinha três anos". "Mas você contribuiu com a bebida". "Não é motivo para ela sair abrindo as pernas por aí. Uma puta..." Candy entrou devagar na sala. Murray a olhou fixo. Ela trazia ainda os olhos baixos que sempre teve. Estava velha, como ele. "Oi...", ela disse. Ele não disse nada, só chorou e caiu de joelhos de saudade.

Everglades

Everglades era enorme
Tinha uma boca escancarada, e era uma merda como ser humano
Fodia com o juízo de qualquer um que passasse a menos de cinco metros

Nunca gostei de Everglades
Ninguém gostava

Era gorda e tinha um sorriso falso,
brilhante

Foda má, como uma trinca de taça de qualquer coisa na nuca
e o sangue descendo

Nunca foderei com Everglades
ela me foderá, sempre...

antes a lua morta aos sábados

somos fortes, mas extremamente frágeis,
ridiculamente frágeis,
idiotamente frágeis,
mas sempre nos sábados nos fortalecemos
com alguma comiseração
e a necessidade de odiar quem nos odeia

não, não isso,
é só o esquecimento,
tudo se esquecerá...

porque iremos afinal...
mas iremos

Essa merda entranhada em mim

meu domínio
é meu copo
estou só com este vinho tinto e a lua

É, Dusquene,
a vida sempre lhe prega uma peça
ria, sujeito indecente,
bom mesmo é vinho,
mulher e sol na
cara

não vou longe,
logo ali Mirtes cagou no meu dia
me dando mil planilhas
para contabilizar
- seja lá o que isso for.
fiz o negócio todo

fui ao vaso,
caguei,
fiz o que devia ser feito

sai do emprego
e só pensei chegar em casa
e beber...

meu domínio
é meu copo
estou só com este vinho tinto e a lua

...

essa quantidade enorme de gente
o ramerrão, o metrô, o contato
com gente miserável
diário

não há dignidade em nada
- mas o riso é fácil
vem estridente
entre dentes
desdentados

é a vida
a se levar -
ou a se beber

mas um conselho, camarada,
bebida e direção não combinam mesmo.

Canção

são 3h e 40 da manhã
não consigo dormir de ressaca
então, a voz diz, levante-se homem
e escreva...

mas escrever o quê e por que?
estou esgotado e puto
o ano foi foda
mais um deste e me estrepo

a voz sugere
que tal escrever um poema
com o título "Canção"
todo poeta escreve uma droga dessas
em algum momento
o seu chegou

é,
"Canção"
aí está
valeu pelos cinco minutos
que levei para compor

mas a insônia,
o gosto de metal
na boca
e a voz
ainda estão comigo

Otto Dusquene

Gatos em noites quentes

gatos nos telhados...
o sexo deles
é uma briga insana,
visceral,
puro dentes, garras
e raiva.
fazem o troço
como deviam fazer
homens e mulheres.
com frenesi
e desespero,
como faca,
rilhando a campa
da noite.
e a lua, vendo tudo aquilo,
todas as fodas –
 as nossas e as deles –
deve pensar
"os gatos são melhores...
podem não ser os dominantes,
mas sabem o que e como fazer”

               Otto Dusquene

Identidade

se não puder
continuar
de onde Bukowski parou
por que tentar?

Whitman, Thoreau, London, Kerouac,
Ginsberg, Corso, Fante, Bukowski,
esta a trilha a seguir...

a corja toda reunida
- uns nem tão corja assim

são magníficos
visionários
desbravadores
transgressores
todos com uma grande pegada

a eles meu respeito
e devoção

Realidade de um crime aberto


o sujeito precisa
aguentar o ramerrão,
se fraquejar
já era

o passar dos anos
destrói muita coisa
boa e ruim
destrói sentimentos
e, principalmente,
nossa boa vontade

uma multidão de rostos,
esquecidas falas e gestos,
dos quais você nem se lembra
porque não tiveram realmente
a menor importância

e precisamos, muitas vezes, ser duros assim
até com os que conhecemos, para que possamos viver
com certa dignidade

Divagação

"tem um  melaço"
"é?"
"um gosto de baunilha, umas"
"é?"
"outra verte catarro esverdeado"
"é?"
"limão é bom, com aquele sumo. tem também as alcalinas"
"você conhece bem o riscado"
"vê...", botou pra fora uma língua imensa,
grossa como lixa de marcenaria
"tenho vasta experiência"
"é, dizem"
"sou o maior provador de p.h. de boceta do país"
"sei"

Inconsciências, a parte dolorida

muito perto
estamos uns dos outros
para sabermos
quais vidas são
consistentes,
quais não

há pessoas
destroçadas
que sorriem
velhas aflições
debaixo da pele

há trincas nos
rostos e na alma
que não fecham
nunca

mais saberemos viver com elas


sexta-feira, 29 de maio de 2015

Reta posição pra se mijar na pia

ensandecidos
seguem os homens
por ninharias

estafam-se em
seus empregos-verdugos,
que drenam o sangue
do indivíduo

tropeçam,
abrutalhados,
nas próprias inconsequências
de uma vida inútil,
no grande vazio

lavadores de copos e pratos,
manobristas de uniforme,
vendedores de apólices,
mercadores de quinquilharias

fabricamos nossa própria condição e
é com este fardo, às costas,
que caminhamos, olhos encovados,
divisando maçãs e peras,
que nunca abocanharemos

O meu companheiro em desagrado


"Pro inferno, Dusquene"
O diabo me intimará
eu continuarei a beber meu drink, ainda em casa,
sossegado
"Já é hora de termos uma conversa séria, amigo"
"O que?! Você está me desafiando"
"Pode-se dizer que sim"
"Você não tem nenhuma carta na manga. Você teve uma vida de merda"
"Mas a sua não é lá essas coisas"
"Eu sou o demo".
"Hum, camarada, perto do que eu já vi nessa vida, você está mais
pra madre Teresa de Calcutá"
"Embrulhe seus troços e vamos"
"Para onde?"
"Para baixo, ora".
"Não dá pra adiar até segunda? Hoje tenho um compromisso com Liv, no Frank's"
"De forma alguma"
"Ela tem uma bela bunda. Cê sabe?"
"Hum... Acho que dá pra negociar um prazo"
"Então, ao Frank´s?"
"É, pode ser, ao Frank's"
Levantamos e saímos, bons amigos

Haver

haveremos de ter uma parte nisto
quando os filhos crescerem,
quando o cachorro morrer de velho,
quando as mariposas vierem,
quando o gato roer o rato
e o queijo embolorar

quando a bandeira ficar a meio pau
e o pau não puder com algumas
socadas

neste instante
não precisaremos mais
nos preocupar - esperamos -
porque, quando
tudo isto vier,
estaremos longe

Alma (é preciso uma...)

conserve sua alma,
mesmo que os imbecis ao seu lado
tentem consumi-la com tédio,
risos, ideias e palavras ocas

conserve sua alma,
mesmo que tenha que socar, chutar,  
foder com alguma vida idiota,
melhor do que ver a sua ir pro ralo,
desde que a sua
realmente valha a pena

conserve sua alma
aos berros, bebendo litros
da boa e velha cerveja
que você tanto preza
e tem domínio
de causa

conserve sua alma,
mesmo  que queiram fazer
de seus dias e noites uma nódoa sem fim,
porque você merece paz e silêncio,
principalmente  quietude,
para descrever suas experiências
com tantos seres imprestáveis e disformes 
que atravessam o
seu caminho

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Pássaros

somos os nossos
obstáculos,
o que fazemos
de nós mesmos
aniquila

estamos acostumados
com o derredor,
somos cracas em frestas

merecemos
alguma trégua,
real,
mas...

somos pássaros
pousados nos fios de energia,
para nada,
lodo chapiscante na paisagem

Edna Hill

Edna Hill queria foder sempre às 17h. Nem um minuto antes nem depois, o começo do troço, é logico. Deveria começar precisamente às 17h e durar, no mínimo, meia hora. E Edgar não tinha meia hora para gastar naquilo. Afinal, tinha filhos para alimentar, uma esposa para cuidar, um cão que precisava de um osso, um canário talvez. Edgar fazia bicos como encanador e preenchia os dois encanamentos de Edna também. Mas o serviço começando sempre às 17h. E às vezes não dava. Edgar não podia parar um serviço no meio para pegar outro.

Edna não entendia e cobrava. Começava a ligar pelas 15h15.

- Olhe, seu puto, não vá me faltar. Às 17h hein? Não se esqueça...

- Estou no meio de um conserto delicado aqui, querida. Posso atrasar.

- Atrasar, o caralho! Se você não chegar aqui no horário, sua mulher vai ter notícias minhas...

E desligava. E Edgar tinha que dar um jeito. Tinha que acelerar o trabalho para se conectar aos encanamentos de Edna.

E, às vezes, Edna não limpava direito um deles. Aí dava merda. Era a vez de Edgar cobrar.

- Porra, que troço é esse! Cê tem que ter mais higiene.

- Desculpe, Ed,  juro que não vai mais acontecer. Foi o salame.

Pugilismo ao cair da tarde

De repente, rolou uma briga no bar.

Na verdade, o dono estava tentando deter um dos clientes, que, de tanto beber, pensou que estivesse no banheiro e começou a se despir. O homem ficou irritado com o proprietário e a luta seguiu no chão. O sujeito era gordo e não queria ser dominado.

"Ele quer me currar, esse filho-duma-cadela. Quer me currar!".

"Levante suas calças, Fred. Saia do meu bar", disse Bulford.

Embora franzino, Bulford tinha força nos braços e havia imobilizado Fred com um golpe por trás.

"Me ajudem. Esse cara quer comer meu cu!".

Por fim, Fred foi jogado na calçada. Levantou todo estropiado. As calças ainda meio arriadas. Era uma imagem triste. Havia se separado de Irene há um mês. E há um mês bebia pesado.

Soube depois de cinco meses que a cirrose, misturada ao conhaque, o havia levado.

Irene continuou rebolando seu rabo de aluguel.

Esgotos


por que não procurar nos bueiros,
nos becos, nos nichos dos edifícios
as vozes dos esquecidos?

daqueles que jamais terão vez...
daqueles que nem chegaram...
daqueles que se desfizeram...
ou jamais se fizeram...

dos mortos em vida,
dos lapidados, dos corroídos,
dos amordaçados, dos homens
de olhos tristes e resignados

por que não procurar nos bueiros
muitos de nós?

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Sem saída num dia quente de maio

"Sei de umas coisas, mas acho que não vou lhe dizer, Dusquene". "Ah é? O que é, mano?". "Eu converso com o Grande Deflorador todas as noites". "E o que ele lhe diz?". "Que todas as mulheres me pertencem". "É". "E que ele somente permite que os outros as desfrutem - ou melhor, fodam - para a propagação da espécie. Mas todas me pertencem. É certo". "Então, obrigado por me emprestar a minha mulher". "Tudo bem. Mas cuide bem dela, um dia você terá que devolvê-la a mim. E quero receber o produto em bom estado, OK?". Olhei pro sujeito mais diretamente. Seus olhos estavam baços. Não sabia se ria ou lhe dava um murro. Por via das dúvidas, fiquei com a segunda opção.

Por não falarmos mais de...

cagalhões,
somos cagalhões,
expomos nossas misérias
nas ruas, sarjetas, paradas e
escadas rolantes,
como esses besouros
que rolam estrume
nas savanas africanas,
para alimentar a prole,
como pássaros
que trazem no bico
bolotas de lama
para construir
péssimo ninho

são vidas inexistentes,
absolutamente vazias
de propósito, que defecam
sua sublime impossibilidade
perante olhos comuns



A pálpebra meio aberta me confunde

eu sou intratável
no trabalho as pessoas me olham de esguelha
pensam que sou um alienígena
e isso é bom

quanto menos contato eu tiver com a Humanidade,
melhor para mim e para ela,
sei que sou uma bolha de raiva
e impaciência

a idiotia das pessoas me incomoda
mulheres grávidas me incomodam
pessoas no metrô me incomodam
o sol entrando pela cortina
me incomoda muito

um dia Dóris me falou:
"Dusquene, você é quase um ser humano"
gostei do elogio,
gosto de Dóris

Destilados



“me tirem daqui, seus idiotas”.

“calma, que estamos terminando...”

“vocês estão me amarrando ao poste...”

“é, com fita isolante e plástico adesivo...”

“puta-que-o-pariu, como vou chegar em casa? Mary não vai gostar disso nem um pouco...”

“é, nós sabemos”
...
“tchau o c.... me tirem daqui..., por favor”.

A fé que caminha ao meu lado


se o pombo naquele peitoril voar
significa que ela virá,
ou algum gato está por perto

assim é a vida,
dependemos das circunstâncias,
vivemos das circunstâncias
que se apresentam

o que melhor podemos fazer
é conservar alguma resiliência
e rotina

“dusquene, seu bode velho,
você não pode com os destilados”

não mais

aliás, a bem dizer, nunca foi forte
o bastante
para eles

sábado, 23 de maio de 2015

Uma semana de cão

Eu fumava uma carteira de cigarros por dia. Plaza ou Carlton.

Comecei a tossir desbragadamente por uma semana seguida. Uma tosse seca e constante.

Fui no médico. Doutor Medenhorf. Clínico geral.

- Tosse. Respire devagar. Agora tosse.

Medenhorf auscultou meus pulmões com o estetoscópio.

- Hummm. Sei não. A coisa não vai bem para você, rapaz.

Ele preencheu uma guia.

- Tire umas radiografias dos pulmões e volte aqui. E logo!

Sai do consultório já prevendo o pior. A doença maldita.

Fiz as radiografias no mesmo dia de tão ansioso que estava.

Liguei à tarde para a secretária do doutor. No outro dia, às 10 da manhã, eu estava no consultório.

Medenhorf tirou as duas radiografias do envelope duro da clínica.

Pôs no contraluz. Olhou por três ou quatro segundos e disse à queima roupa:

- Nunca vi algo parecido em toda a minha vida profissional...

Olhei para o doutor e depois para as radiografias no contraste.

- O que o senhor nunca viu?

- Seus pulmões estão envolvidos por uma película visível, clara como água. Está vendo?

Ele apontou áreas ao redor dos pulmões que realmente apresentavam um contorno indefinido, esbranquiçado.

- E isso é ruim?

- Péssimo, meu rapaz. Você deve ir urgentemente a um pneumologista. Logo!

Sai mortificado da consulta, com o envelope com as radiografias debaixo do braço.

Marquei a consulta com o pneumologista. Só tinha vaga daqui a uma semana. Não tinha jeito. Mesmo dizendo que era caso de vida ou morte, de pré-enterro, só daqui a uma semana.

Foi uma semana dos diabos. Uma espera cruel, aterradora.

No dia da consulta, lá estava eu no consultório do pneumologista.

A atendente me chamou. Entrei no consultório. Expliquei o caso. Ele me pediu as radiografias e as colocou no contraluz.

Olhou-as por três segundos.

Não aguentei:

- É câncer não é?

O médico me olhou.

- O senhor não tem nada nos pulmões.

- E essa película branca ao redor deles? - apontei.

- O senhor deve ter se mexido um pouco na hora em que as radiografias foram batidas. Noto que o senhor é muito ansioso... Esses contornos são normais... É o estremeção.

Vi sangue. Na minha frente só um nome: Medenhorf.

Agradeci o doutor. E sai dali. Precisava de um telefone público.

Liguei para Medenhorf. A secretária atendeu. Pedi para falar com ele. Caso importante. Ele não atendia ligações, mas, quando a secretária lhe disse quem era, ele ficou curioso.

- Medenhorf falando...

- É você, seu baita filho-duma-puta? Aqui é o Dusquene, o paciente que você enlouqueceu por uma semana dizendo que meus pulmões estavam envoltos por uma película cancerígena...

- Mas eu nunca disse que era câncer. Só imaginei que...

- Pois não imagine, seu traste! Você não sabe a semana dos cachorros que me fez passar. Você não é médico Medenhorf. Você é um sádico, um carniceiro, um carrasco, é isso que você é...

E desliguei, quase quebrando o telefone público.

Depois olhei para o envelope com as radiografias dentro dele.

Rasguei tudo com vontade. E deixei o espólio ali mesmo na rua.

O gari que se fodesse.

Sensação de merda no sapato esquerdo


é preciso sinceramente que haja algo melhor que isso,
do que observar esses rostos óbvios, frequentes,
à espera do próximo pagamento,
do próximo telefonema,
da próxima viagem interestadual,
do próximo fim de semana,
do próximo reality show,
para que eu consiga me apossar
das sobras de mim

não quero ter contato com 99% da humanidade
mas estou cercado desses 99%
sou um ser solitário e mal-humorado
não me dou bem com gente
só com cervejas e jogo de números

a cada dia a tensão aumenta
não consigo sequer olhar para seus rostos...

mas sempre há a perspectiva
da próxima viagem interestadual,
do próximo fim de semana,
do próximo reality show,
do próximo telefonema,
para que, enfim, esses 99%, envolvidos pelas novidades,
desapareçam por algumas esplendorosas horas

Dragon fly

perdemos muito
com discussões intermináveis,
com similitudes, com linearidades
empalmando vidas e sentimentos
que voam longe
e não estão ali, naquelas pequenas coisas
que fazem nossas misérias parecerem maiores
e extremas

perdemos muito tempo
com carros, vasos, limpeza, pó,
TV e música ruim, ao verificar
a correspondência e o cisco
no chão

é,
enquanto vejo essa libélula
pairando sobre a poça,
uma libélula pairando
sobre uma poça,
realmente uma idiotice

A rombuda face de um mal que persiste

eu não tenho escolha
todo o dia me levanto, vou trabalhar
e dou de cara com uma multidão
que eu não queria ver

os rostos me deprimem
a sensação de inutilidade de suas vidas me deprime
a vaga lembrança neles de algo vago me deprime
até mesmo a suposta confiança que aparentam de querer prosseguir

caminho entre pessoas como mais um sacrificado,
fodido, malbaratado, estúpido ser das massas
penso: "bem, pelo menos, é sexta, não os verei por dois dias..."
não deixa de ser um alento, ainda com a possibilidade dos drinks no Salute a vida já não é tão ruim

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Miragem de uma vaca na estrada do desconhecido


a semana é sempre em perspectiva
pode ser uma droga - e geralmente é -
ou nela chegar a Fortuna, essa prostituta linda,
e ela poderá finalmente mostrar a calcinha para você

confie, Dusquene, aprenda com os dias ruins
dias de insolação, urticárias e dor,
de suor esfalfante, de pragas e insânias
de nada

lembre-se que haverá sempre a possibilidade
do tinto e do relax, da sorte sentar em seu colo

"E aí, mulher, como você cê chama?"
"Rebecca Money"
"Sobrenome interessante, Reby, Aceita um copo?"

E ela aceita e ela põe a língua fria na sua boca
e, com a mão macia, pega o mangalho, já teso
"Hoje a sorte sorriu pra você, Duc"

E ela sorri aqueles belos dentes de pérola
na moldura do carmim intenso
"É, baby, eu merecia um descanso das trincheiras"

"Então, Reby, como vai ser? Onde assino para receber a grana?"
E ela me mostra um pergaminho antigo,
retirado da liga preta de sua perna direita
Ela toda de seda azul, perfeita, maravilhosa...
"Aqui, no pontilhado"

Ao colocar a caneta na linha indicada, eu noto
a expressão no meio do texto, diminuta, mas logo acima
"e assim ele concede sua alma"
"Porra, de novo essa história de alma, Reby"

Mas quando eu levantei os olhos a puta havia sumido
E eu ali, no quarto, segurando a caneta verde-enxofre
com o zíper aberto e o pau penso

Um cão

amo você, baby
como um cão
um cão danado
um cão de rua
triste

um cão cheio de carrapatos
com cicatrizes no focinho
seco e só

amo você, baby
como um cão
parado numa esquina
sarnento, repulsivo,
repleto de pulgas
e triste

amo você, baby
como um cão
manco e débil,
mas feroz

amo você,
ganindo

Traços de uma inconsciência indizível


beber purga a alma
contra a idiotia,
preserva a sanidade
e nos dá certa experiência

não os borralhos, as diarreias,
as cagadas de empestear
até gaiola de canário,
não as quedas, os vômitos,
isso também,
mas essencialmente não isso,
e, sim, o “e se eu não tivesse feito,
o que teria hoje pra contar?”,
algo assim

bebi para obter experiência e por gostar,
hoje vou devagar nas garrafas,
não tenho mais 25 anos,
mas ainda as enxergo
como reais instrutoras
bojudas

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Como compro sapatos

Sempre comprei meus sapatos. O homem que não compra seus próprios sapatos não é digno de viver sobre a terra. Tenho um método para comprá-los. Deixo a coisa ficar bem gasta, em petição de miséria. O solado esburacado. Então, entro na loja, escolho um par, invariavelmente preto. Calço. Vou pelo conforto. E nada de fivelas e tremeliques. Coisa de veado. Sapato seco, discreto, forte, para bater. Pago e já vou calçado com o novo. Deixo o par velho e roto na caixa, para que a atendente jogue fora, ou enfie aonde couber. Nem me despeço dos velhos amigos. Que eles se fodam, não fizeram mais do que a obrigação de me servir. Paguei por isso.

...

há muita aspereza em tudo
e quase não vemos além da crosta
e a vida anda no seu normal
e quase não vemos nada de realmente
proveitoso
as pessoas vão e vêm porque o homem
é um ser inquieto
e nessa inquietude, tumultua, perverte, mata

A estante morta neste dia turvo

1
A merda é estarmos todos vivos ao mesmo tempo.

2
Ninguém merece o que não tem.

3
Sofrer? Vá à África veja o que é sofrimento.

4
Toda mulher é um estado de espírito estranho.

5
Morrer é melhor do que estar meio vivo.

6
Katrina, Irene... Ah, as mulheres de minha vida!

7
Foder às vezes não é melhor do que coçar o saco.

8
Vou quentando...

9
Toda mulher é um tédio depois de duas horas.

10
Dusquene, um dia a sorte lhe cai nos joelhos.

A mão na concha vulva e feérica

1.
O bom da vida é a farra.

2.
Ter um cão é muito pior do que ter mosquito no quarto.

3.
A mentira é ruim, mas preserva.

4. 
Qualquer idiota consegue ser mais idiota do que parece.

5.
Shakes tem suas qualidades.

6.
As pessoas não mudam. É um fato. Quem virou santo é porque nasceu para isso. Mesmo que tenha comido umas putas.

7.
Você é um canalha para alguém - pense nisto.

8.
Felicidade é rotina cristalina.

9.
As mulheres... Ah, as mulheres realmente fêmeas...

10.
Foder é um estado de espírito.

Fante, Fante, Fante, todo Fante

1933 was a Bad YearBukowski resgatou essa novela incrível
Fante no manuscrito
esse livro de Fante inédito até 1985
O Braço inédito, o arremesso feroz
os sonhos de uma América em plena Depressão
tudo tudo todo ali
naquele livro maravilhoso

eu sou, quem não é, Dominic Molise,
dos Molise, de Roper, Colorado
Santo John Fante, Santo Fante
que mostrou o texto real, verdadeiro

você me fez querer ser Santo,
Santo, Santo, Fante heroi da América
"enfim, encontrei um grande homem,
alguém que não teme a emoção"

Fante redescoberto por Buk
Fante Santo Arturo Santo Santo Bandini
1933 was a Bad Year
só foi para você, Dom Molise,
para quem lê é a América, ingênua,
e fiel a seus filhos

quarta-feira, 20 de maio de 2015

O lado negro de um moribundo bebum

A merda de sentar todo o dia numa mesma mesa de escritório é que você podia se deparar com Sonja. Ela falava mecanicamente. "Por favor, sr. Dusquene, o senhor poderia agregar essas planilhas de auxílio doença às que o senhor já tem para calcular?". "Tudo bem, Sonja, coloque". "O quê?". "Coloque do lado desse monte aí na sua frente". "Gostaria, por obséquio, que o senhor desse prioridade a essas planilhas, porque são de funcionários nossos". Ergui os olhos. "Sonja, aqui não tem como passar a fila", falei consciencioso. Ela encheu o peito. "Senhor Dusquene, o senhor é um funcionário exemplar. Realmente exemplar". "É, Sonja, eu procuro ser. Que tal almoçarmos hoje, hein?". Sonja tinha belas tetas e pernas e um traseiro que deveria aguentar bem o mangalho. Ela topou.

Annie

Annie
Seu passado não é bom
Seu futuro é meio cinza
Os sonhos já se foram e você...
Oh, Annie, por que a vida cobra um preço?
Por que as coisas não se resolvem
Como num lance de dados?

Annie
Você queria pisar em conchas frias
Você insistia em ver o mar, só isso
E ninguém a levou para navegar, ninguém...
Oh, Annie, por que a vida cobra um preço?
Por que, pelo menos, não é sempre julho?
Oh, Annie, por que?

Annie, é agora?
Qual caminho você deve seguir?
O que você pretende fazer com o resto dos seus dias?
Falta muito amor, Annie, quando falam com você
Eu sinto, falta muito amor quando falam com você

Sob o chão de Saturno, essa merda...

esta noite
estou triste
as coisas
não fluem
como deveriam

nem as mulheres
de dia
estavam melhores
nas ruas
hoje

e
todos são
indiferentes
a todos

levam suas mágoas
e angústias
presos
como tigres contidos
uma merda...

e vão morrer
disso
aos poucos
sempre

e assim
viveremos
até o fim
sem dar qualquer
espaço ao que
realmente
queremos fazer
ou dizer

Espólio de fim de festa

quando voltamos da farra,
seu corpo branco, cansado,
os salto altos pendentes
de dois dedos seus,
quero dizer apenas:
você é linda

a noite de reveillon
lhe fez muito bem,
e esse vestido branco,
loura, mel,
meu prazer,
e alegria

você sorriu, bêbada
do champanhe,
eu logo vi,
como sempre,
que necessitava
de você
comigo

não fuja, durma
e não diga nada disso
a ninguém



Tempo de poros largos e entumescidos


sempre há
o que dizer
numa briga
entre paredes

ofensas severas,
berros, cortes,
cicatrizes,
se ficam?
às vezes

entre eu
e ela
não há
diferença,
só a certeza
de que o tempo
avança para o nada,
mas está sendo bem empregado

terça-feira, 19 de maio de 2015

Meus tristes olhos que enxergam longe

meus olhos estão dormentes de ver as mesmas coisas
mulheres empurrando carrinhos cheios nos supermercados
mulheres levando seus cachorros para defecar na grama
ou empurrando os futuros homens em carrinhos de bebê
estou cansado também das bancas de jornais
de apreciar tantos rostos débeis a passar por mim
rumo ao nada

meus olhos estão sedados de ver, dia após dia,
a consumação do tempo em inutilidades
estão cansados do mundo jovem
com seus skates e esportes radicais
esgotados também pela multiplicação de academias
e biotônicos e isotônicos
e tudo o mais

meus olhos padecem e eu não posso arrancá-los
das órbitas diárias do meu ser comum

Tattoo

Misty começou com uma tatuagem pequena, em forma de uma pequena buceta, no lado direito do pescoço. Na verdade uma daquelas flores que parece uma racha. Achou legal, fez uns ramos do pé da flor até o meio do pescoço.

Ficou realmente legal. Mas estranho. Os pais se horrorizaram. Os amigos nem tanto. Acharam bacana o troço. Os ramos da buceta do pescoço pareciam nascer dos peitos de Misty.

Ela resolveu, então, fazer da flor única um bucetal, estendendo o jardim por toda a face direita. A mãe desmaiou. O pai a expulsou de casa. O namorado, que antes apoiara a merda toda, não aguentou o exotismo e deixou Misty com o seu roseiral de tattoo.

O tempo passou. Ela foi ficando cada vez mais esquiva. Passou a andar com pessoas cada vez mais esquivas também.

E, meses depois, ao acordar de uma bebedeira, Misty olhou-se no espelho partido do banheiro de um sujeito qualquer, a quem dera por não ter o que fazer na noite anterior e porque precisava de um lugar melhor para dormir. O que viu não foi bem o que queria. Aliás, não viu nada daquilo que queria.

Queria ver seu rosto antigo. Clamava pelo seu rosto de dez meses atrás. Sem adesivos. Sem carimbos. Sem flores-bucetas. Sem ramos, sem roseiral, sem nada. E começou a chorar convulsivamente, a se desesperar, a morrer por dentro. O que fizera foi um crime contra si, sua real identidade. O seu verdadeiro rosto, nunca mais.


Três dias depois estava morta. Cortara o ramalhete pelo talo.

Um lugar

habito um
lugar onde poucos vão,
um lugar áspero, férreo,
arenoso e solar,
onde planta alguma
resiste ao contato
do que sou

este lugar
está em mim,
e eu me reconheço nele

a mente trabalha
as ansiedades dos dias,
de vinho tinto barato, da borra
no copo americano,
e eu vejo em mim
a loucura em
face aberta,
delirante, bela, crua,
a me chamar
nenhum
nem um 

Vaga para deficiente físico

um homem andou pelas calçadas da cidade, ninguém soube
um homem esteve presente nos principais acontecimentos, ninguém notou
um homem sentou em bares pustulentos, bebeu, berrou, e daí?
um homem trepou, mijou, cagou, e não era para ninguém ter visto mesmo
um homem balançou na mureta de um viaduto, burramente, alguns se espantaram
um homem relaxou, mas sofreu muito também, às vezes, quem viu
um homem trabalhou - e trabalha - sol a sol por 28 anos, foda-se
um homem leu os poucos autores que valiam a pena e se retirou para o nada
um homem bebeu todas as bebidas pensando não ser necessário tudo isso
um homem viu suicidas saltando de edifícios, se enforcando ou metendo uma bala no crânio
era eu este homem, era qualquer um, era você
ninguém nem aí

De alma partida mas com uma fé infinita

li no jornal que um cara bateu na mulher
com a primeira coisa que lhe veio à mão:
um poodle branco

Gillmore bateu forte duas vezes com Tiffany na cabeça de Sheylla
no segundo golpe a cadela morreu, o cérebro partiu
o cara foi preso por maus tratos a animal e agressão

Sheylla, com um enorme hematoma no olho direito,
perdoou Gillmore e enterrou Tiffany no quintal dos fundos
numa bela cerimônia, mármore perfeito

os vizinhos compareceram, todos

You

Você,
que pensa que será grande daqui a alguns anos,
que pensa que realizará seu sonho sob água matinal,
que permanecerá sempre tentando,até o esgotamento,
que sobre derrotas nada falará, justificando-as todas,
que fará uma merda atrás da outra

Você,
que buscará no álcool qualquer coisa de humano, e ficará vencido,
que procurará qualquer coisa sob o solar da lua morta e nada encontrará,
que desmontará a maquete antes mesmo do primeiro tijolo cozido,
você, homem, você, você mesmo, que dormirá com os porcos, no trajeto,
e que clamará aos céus pelo aniquilamento

Você,
que imaginará ter um tesouro sob a pedra,
que vomitará bílis e desejos ao lado da gorda mesa,
que espantará pombos como bichos humilhantes,
e se servirá do último drinque no copo americano,
você, homem, você, você mesmo, que é da América,
nua, escura, úmida, calorenta, bela
como uma stripper

Você,
que perderá os culhões sob as fachadas luminosas dos supermercados,
que antecipará o pagamento da empregada por pena e asco e insinceridade,
que dormirá sob as estrelas em uma noite clara de vigília bêbada,
que deixou para trás todo o legado de 50, 60 e 70,
que esperará somente viver um pouco mais mais,
para que o urso ainda tente abocanhar o peixe,
ou algo, assim, idiota e totalmente humano,
assim é, homem, assim

O poema ao rés-do-chão

Bukowski demorou
três décadas para colocar
o poema ao rés-do-chão
e ninguém compreendeu nada?
ele nos mostrou ser possível
fazer poemas de carne e osso,
que cheirassem à vida como ela é
por que jogarmos isso fora?

o poema é feito justamente
de ninharias, desse amontoado
de bobagens, da falta de sentido,
de nossa miserabilidade

melhor seria se o poema não existisse
mas ele é como pus
em espinha dolorida
e explode à luz do dia

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Como não ver isto, como não?

somos pequenas pústulas
que estouram facilmente,
e crateras se formam
em nossas almas
erradias

vivemos como podemos,
e “como podemos” nos torna
o que somos

a birita, o jogo,
a farra,
tudo se acaba,
até as boas mulheres
escasseiam em pleno dia,
perdem-se na multidão
eterna e crescente
como sargaço

somos o que somos
pelas circunstâncias,
e morremos pelas
circunstâncias que
enfrentamos,
uns com mais,
outros com menos
coragem

e essas pequenas pústulas,
quando rompidas,
sempre atiçam,
por federem,
a curiosidade alheia  

Pandemônio ao clarão invoco

pombos, gatos
e assassinatos

há nas ruas,
todos os dias

convívio duro,
porém necessário
e urgente

há guerra em tudo,
na grama, nas calçadas,
nas árvores, nos parapeitos
dos edifícios do centro,
no asfalto, dentro dos carros,
em mim, em você

a cidade clama por assassinatos,
como se vivesse disto,
deste ódio,
desta tara

e, quando não ocorrem,
o que fazem com o giroflex
das viaturas?

sábado, 16 de maio de 2015

Uma tarde-noite como outra qualquer...no Finnegan's

Conheci Brenda Clark no Finnegan´s.

Eu estava bebendo no fundo do bar. Aí ela chegou. Não em mim, no balcão.

Gostei do tipo. Boas pernas, bons peitos. Vestido vermelho estampado escuro. Sapatos altos, pretos. Enfim, uma mulher...pensei.

Ela me olhou. Eu olhei. Ela piscou. Eu fui. Sentei no banquinho do lado.

Pedi um scotch. Ela foi de martini. Classuda.

- E aí, como você se chama?

- Dusquene, madame.

- Humm. Finalmente um cavalheiro na cidade.

- É. Pra variar, baby.

- Não me chame de baby. Eu não gosto.

- Tudo bem. Ficamos por aqui bebendo uns drinks ou vamos pra um lugar melhor.

- Tenho um apê aqui perto.

- Um bom começo.

Fomos pro apê. Belo apê por sinal. As cortinas afastadas mostravam um bom panorama da cidade.

- Acho que posso me acostumar com isso – eu falei.

Brenda riu. Desta vez eu pisquei.

No fundo da sala cor de salmão havia um piano de calda. Muito distinto.

- Você toca?

- Quer dizer...piano? Oh, não! Parei no quinto ciclo. Optei pelo golfe. Cê tá me estranhando?

- Calma, benzinho.

- Não me chame de benzinho. Não somos íntimos a esse ponto.

- Mas podemos ficar...

Então Brenda apontou para o quarto (presumo que era um quarto) no final do corredor.

- Que tal?

Fui grosseiro.

- Dá pra beber mais um drink antes do troço?

- Não. Quero agora.

- Se é assim. Estão vamos.

O colchão era de água. Não tinha como. Eu bem que tentava, me esforçava, mas o negócio empinava. Dobrava minhas costas. A instabilidade do líquido.

- Mete, vai, mete fundo! - ela dizia.

Após muito suor, carquei e fui. Resfolegando, o colchão subindo, Brenda descendo, o suor empapando tudo, o fim de tarde, o calor, a maldita dor nas costas, joelhos, cotovelos e mãos sem sustentação, tudo balançando como pinheiro num vendaval, mas, por fim, os vizinhos acabaram escutando o tumultuar dos ahhhhhhhhhh, baby, benzinho,isso, éééé benzinhoooooo, babyyy, urfghhhahhhhhhhhhh que foi se propagando até o balcão do Finnegan’s.

É, o Finnegan´s, bom bar para começar uma foda.

Por que me sinto tão mal

estamos meio perdidos nessa terra de ninguém
sem objetivo algum
só quentando o rabo no sofá
e esperando que algo aconteça
ou um copo de cerveja nos chegue às mãos

é um troço esquisito esse tédio
não sei o que vocês fazem
para confrontá-lo
- eu escrevo poemas
e tenho uma novela "Moto Continuum"

realmente não sei mais o que eu posso fazer
ou querer, ou ter, sei lá
as coisas precisavam fluir mais rapidamente
eu precisava querer mais até
- porém não quero nada,só quentar ao sol de agosto

é difícil não ter uma meta,
mas qualquer meta e merda dá na mesma
no final tudo fica extremamente ridículo
e sem sentido, de qualquer forma

Meu elo ao pé do monte

já tive ressacas
brutais

há anos, não mais

passei a estar no controle,
há tempos
a bebida não me
domina mais

antes, saia do trabalho
direto para o bar

foi assim
durante 6 anos

mas eu era jovem
e tinha compromissos severos

incrível estar vivo,
penso

jamais imaginei
que este tempo
chegaria

foi barra

Dívidas a apagar a termos


a vida é uma fornalha
é preciso ter a pele espessa
para suportar
as chamas,
o toque da brasa
diário

Gallaragh se matou
porque Mia o deixou

Bullford bebeu as
garrafas do mundo
depois que
sua vaca Elsie morreu

Parkinson passou mal
durante 25 anos
mas e daí?
quem se importa

os asilos estão cheios
de “quem se importa”

eu também nunca os
visitei

a vida é pesada
e dura
é uma fornalha,
que derrete
chumbo
e almas

sexta-feira, 15 de maio de 2015

O profeta nosso de cada dia


Ele passava quase todos os dias pela avenida, no meio da noite, gritando a plenos pulmões que o mundo iria terminar em poucos dias. "Vocês vão ver seus palermas. Ficam ajuntando dinheiro sujo, escroto, debaixo do colchão... VOCÊS NÃO TERÃO TEMPO DE GASTÁ-LO!"

Alguém gritava de um dos apartamentos.

"E o que você nos aconselha, Sulffock? Que a gente dê a grana pra você?".

Sulffock, de barba longa e cinzenta, roupas puídas, olhava para cima, tentava em vão achar o remetente da mensagem no meio das luzes acesas.

Não conseguindo, berrava:

"DEEM SEUS RECURSOS AOS POBRES DE ESPÍRITO! PARA QUE POSSAM SANAR SUAS MISÉRIAS E NECESSIDADES FÍSICAS ANTES QUE VENHA A CALAMIDADE TAMBÉM SOBRE ELES".

Um outro gritou.

"Acabe com essa gritaria, seu alucinado. Todo o dia é essa porra! São quase 11 da noite. Tem gente que precisa trabalhar amanhã. Vê se arranja uma sarjeta pra você se encolher e dormir".

"FALOU A VOZ DE UM PECADOR EMPERDERNIDO!", malhou Sulffock, desta vez identificando o dono da voz e apontando para uma das janelas onde se encontrava um gordo de 130 quilos, de camisa branca.

O cara ficou puto.

"FIQUE QUIETO! NÂO SE MEXA! VOU AÍ PRA LHE MOSTRAR O QUE É UMA CATÁSTROFE IMINENTE!", disse e saiu da janela.

Depois de procurar Sulffock durante meia hora pelos becos e vielas do quarteirão, o homem o encontrou dormindo como criança, numa manjedoura feita de pilhas de jornais velhos, que ele catava de dia para ganhar a vida e manter toda a vizinhança informada sobre os futuros e inadiáveis acontecimentos.

Um evento à luz do dia

ei, Joll,
o que você vai fazer agora?
afinal,
você não esperava por isso
não é, Joll?
eles não lhe deram estudo
só umas baganas
sem filtro
né, Joll?
por isso, teve que roubar
matar a fome
fazer a vida
Joll

puta-que-o-pariu
a bala foi um coice
no peito
do cara
tava ali à-toa
não tinha nada que tá ali...

não deu pra escapar, né Joll
você tem nervos frios
aguentou muita coisa
mas aquela
cusparada
não deu...
foi o cara é?
foi

por que ele lhe provocou?
ninguém sabe a paciência
de ninguém
ninguém sabe
não é, Joll?

Joll,
quais os seus planos na prisão?
quais os seus projetos para a Morte?
Alice talvez não possa lhe esperar
São 20 anos, Joll
20 anos
é demorado

Cena um

"toca a ponte", o velho berrava no meio da Rushmore.

"desce... não! toca a ponte", prosseguia, abrindo os braços.

"pare com esses gritos, miserável", diziam alguns transeuntes.

"toca a ponte, você também", o velho apontava.

eu passei direto, sem nada dizer.

O Cérbero para você, meu bem

qualquer
abandono fere,
mas há pessoas
que anseiam
o abandono

são pessoas com
autonomia,
ou, pelo menos, se dizem

mas que,
na verdade,
são dependentes de
sua solidão
e dor

não há nada
mais melancólico
do que esse
tipo de gente,
que nos pede
compaixão

de sua aparente
vulnerabilidade,
tornam a vida de todos
um inferno
emocional

atenção:
é chantagem e da grossa




quinta-feira, 14 de maio de 2015

King

"sente estes calos..."

"eu não vou encostar nesses calos..."

"por que? tem nojo?"

olhei para as grossas mãos de Seymour.

"isso não são mãos. são bate-estacas. bigornas enferrujadas".

Seymour sorriu.

"estas mãos, Dusquene", levantou-as, "já fizeram o certo e o errado".

"acredito. mas agora estão um pouco gastas".

"é", Seymour observou-as mais de perto.

"qualquer hora despencam e você nem perceberá".

Seymour olhou-as mais próximo ainda.

"é, talvez precisem de um daqueles hidratantes..."

desta vez quem riu fui eu.

"é, por aí".




Aos leitores

Podem reproduzir à vontade os poemas e escritos do Otto Dusquene, postado neste blog, em seus blogs e páginas pessoais, se desejarem.

Somente peço que identifiquem o autor dos poemas e textos.

Otto

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Ao escutá-las em leve torrente natural


ainda descobrirei
as poucas palavras
que podem ser ditas
às mulheres
que não as façam enlouquecer
e nos enlouquecer

talvez essas palavras
existam  e
estejam
por aí

suspensas
nos postes,
nas calçadas,
nos bares, nas ruas,
nos bueiros e adegas,
em pátios de igrejas,
nas pontes suicidas,
nos poleiros dos papagaios,
nas camas de mil amantes
assassinos

enfim,
como poderei
sabê-las?

mas,
se essas palavras existirem,
serão, certamente, plenas
de misericórdia
e dor

O TEMPLO DA SUBLIME DOR E DO PERDÃO DE VALIKAALYA


Valikaalya encontrou um bom local de comércio e alugou duas lojas compridas e conjugadas. Era uma aposta de alto risco. Dois dias depois, com um púlpito de madeira e doze cadeiras, inaugurou O TEMPLO DA SUBLIME DOR E DO PERDÃO DE VALIKAALYA. Assim dizia a imensa placa na entrada. Os primeiros adeptos da seita (ou religião) começaram a aparecer no dia seguinte. Valikaalya advertia todos que O GRANDE ARQUITETO estava tremendamente aborrecido com a safadeza crescente na Terra. O GRANDE ARQUITETO decidira destruir o planeta. Porém, Valikaalya informou que poderia apaziguar O GRANDE ARQUITETO com oferendas, mas não com quaisquer oferendas. E neste diapasão a roleta girou. Em cinco meses,  O TEMPLO DA SUBLIME DOR E DO PERDÃO estava abarrotado de fiéis. Duas lojas laterais, menores, foram também alugadas, tendo as paredes internas quebradas para aumentar o espaço para mais cadeiras.

A tesoureira da seita era Bagoradhavana, irmã de Valikaalya. Este agora só chegava ao templo de carrão, ladeado por dois seguranças negros. Todo esse movimento começou a chamar a atenção da Receita Federal, já que Valikaalya registrara O TEMPLO DA SUBLIME DOR E DO PERDÃO como comércio comum, especificamente um bar-boate. Os fiscais vieram um dia pela manhã. Confiscaram o livro caixa, apreenderam computadores e documentos e encontraram US$ 25 mil, em cash, no cofre na SALA DO SUMO-SACERDOTE VALIKAALYA.  Ao saber do confisco e da apreensão, Valikaalya deixou escapar um “como só US$ 25 mil?...”. Depois, tudo foi esclarecido. Bagoradhavana havia escapado com US$ 450 mil para um paraíso fiscal e, de lá, para a Índia, onde estaria vivendo em concubinato com um dos seguranças do irmão, que teria levado a tira-colo.

Os fiéis continuaram chegando.

Notícia


li há pouco
que um velhinho
foi expulso
de um asilo
por esconder
uma puta
debaixo da cama

tem mais:
o sujeito
usava
o lucro
obtido com
a venda de álcool
no estabelecimento
para pagar
garotas de
programa
para os
amigos

a vida não é melhor que o poema?

o cara deveria ser condecorado...