domingo, 30 de setembro de 2012

Particularidade de uma expulsão do quadro de avisos


estou cada vez mais sem paciência com a humanidade
meu mau-humor crônico pode estar agravando a situação,
mas sinto que a imbecilidade geral está aumentando
como as heras nos muros
como os lodaçais dos trópicos
como as ervas daninhas nos campos abertos

e não tem volta
a estupidez humana é atávica
abrange todas as classes sociais
todas as culturas e religiões
todos os militarismos
rebelar-se é inútil
tentar escapar
também

por essa e outras razões
prefiro comprar uma dúzia de latas de cerveja
e ficar mamando, só, tabulando as teclas do computador,
sem querer encontrar sentido algum para coisa nenhuma

O que rescende a fósforo e gás


essa fortaleza foi erguida aos poucos
ao longo dos anos na planície
ouvindo o ranger da maquinaria
vendo a moedura de carnes e ossos
presenciando o amargor do povo

minha rigidez,
meu escárnio, meu desprezo
foram construídos lentamente
vendo o que fazem os homens
para se manter com o nariz
acima do nível da merda

essa construção
do que hoje eu sou
foi feita de sensibilidade cortada
em tiras, jogadas ao chão

assim,
se sou o que sou agora,
é porque vocês me fizeram pior do que eu
me imaginava

Um pouco de lama em tudo e todos


1
Não creio em gente, nem que o cachorro não morde. Se tivesse que acreditar em um dos dois, confiaria no cachorro.

2
O que você mudaria no seu passado? Preferiria não ter nascido.

3
A convicção é a receita do idiota. Por causa dessa superstição, ele perde mulher, carro e sanidade. Existir é conviver com o caos.

4
Se eu passei todos esses anos na planície só, porque agora tenho que me importar com uns e outros. Que se fodam!

5
Consciência é necessária para não assassinar o dono do cão, quando se descobre, pelo cheiro, a merda no sapato.

6
Eu sou Otto Dusquene.
Você, quem é?
Uma página em branco.
Um nada consta.

7
"Você se acha muito importante, não é, Dusquene?"
"Não sou pior nem melhor que muitos"
"Ah, um resto de humildade, enfim"
"Também não sou igual"
"Vá se foder, Dusquene!"

8
O ruim é a mocinha tlec-tlec logo atrás de você, saindo do metrô.
É enervante.
Paro pra deixar a vadia passar.

9
Vê se lê Bukowski, Fante, Kerouac,
Esqueça essas merdas, cara!
Sinta o vômito da rodoviária e dos becos.

10
E pra finalizar...
Boceta é a commoditie mais barata do mundo.

sábado, 29 de setembro de 2012

Baby, éhhh

e fomos,
no turbilhão da vida,
um pouco melhores que muitos,
e muito piores que nós mesmos

nos magoamos,
mas suportamos o ramerrão,
sem uma fresta no muro,
superando um dia após o outro,
até o fim, sob o sol fervente,
na cara, de chapa

é foda,
eu sei, é foda,
e nos fodemos também,
para não perdermos a viagem
 

Reflexão num dia de tempestade


a vida é passageira, homem,
mas parece que já vivi um século
no meio do turbilhão há quase cinco décadas
e hoje estou melancólico, triste mesmo
quero meus bons tempos de volta
mas sei que jamais os terei
e terei que seguir em frente
mesmo assim
bem ou mal
em frente
sempre

creio sinceramente
que os bons tempos já passaram
e realmente estou chateado por isso
era um tolo, mas havia sempre a possibilidade
do ouro na moldura dos dias que viriam

o que me resta agora é engasgar com o metal na boca seca
revirar no sofá, confrontar essa angústia no peito
e o maldito sol que desponta
atrás da persiana

Passagem para...


"Senhores usuários, é proibido agachar ou sentar no chão do metrô", diz a voz feminina mecanizada que sai da tubulação.

Mensagem completamente inócua.

Os vagões chegam e partem repletos de gente que não consegue nem respirar. Comprimida até a ponta dos pés. Muitos passam mal, alguns desmaiam, por ficar os 45 minutos da viagem imóveis.

Essa sorte não basta.

Durante o percurso, o sujeito pode se acomodar bem em frente a outro que lê, que reza em voz alta e quer que todo mundo vá junto, no embalo.

Se há um trem para o inferno, é o metrô na hora do rush.

De vez em quando há uma diabinha suculenta, mais é raro. Muito raro.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Um turbilhão ipsis litteris

1.
Os caras realmente durões não leem nada.
Eu leio,
Logo, sou uma bosta.

2.
Mas existe outro tipo de dureza,
que é aguentar o ramerrão
por 30 anos,
aí tenho algum valor,
só assim.

3.
Se o barbante não aguenta o peso, é melhor nem tentar.

4.
Estamos sempre correndo para ficar no mesmo lugar em que estamos.

5.
Qualquer palavra é um vazio completo em si mesma.

6.
Perder é uma forma de se achar um pouco. De testar limites.

7.
Sou um fraco de nascença.

8.
Qualquer idiota pode ser mais idiota do que você pensa.

9.
Um sujeito que não tem nada a perder é uma ameaça social.

10.
Hitler não tinha.



Sondra Coxmoney


Eu via Sondra Coxmoney levantar a bunda da cadeira e algo em mim se erguia também. Aquela mulher era um assombro, o ideal de qualquer homem. E estava ali, à mão. Eu adorava suas saias justas, seus peitos, suas pernas, tudo nela era SEXO, do mais alto nível, se é que isso existe.

"Sondra, você me mata um dia desses...", eu brincava e piscava.

Ela ria. Eu também. E assim ia.

Até que um dia eu não aguentei mais.

"Que tal uma escapada na hora do almoço".

"Não posso, Otto, já tenho compromisso".

"Fica para outra vez".

"É, quem sabe?".

Ela encheu a garrafa no bebedouro, sorriu e saiu rebolando sua anca de égua. Eu fiquei ali, vendo aquilo, parado, com a vara querendo romper a cueca.

Deu a hora do almoço. Eu sai. Segui pela galeria até o restaurante a quilo mais próximo. Dez metros à minha frente vi Sondra andando, presa na cintura de uma loura. Pareciam se divertir bastante.

É, Dusquene, não se pode ter tudo na vida, nem Sondra.

No vácuo daquilo que nos tornamos sóbrios


as pessoas afiam suas garras
em outras pessoas
é seu modo de ser
cumprem um requisito intríseco da espécie
precisam rebaixar
para se sentirem iguais
necessitam da ironia para sobreviver
morder a mão que as alimenta
só para registro
distração
ou posse

isso vai num crescendo
e afeta a todos da roda
- é o caralho esse sistema,
mas evolutivamente funciona:
elimina os fracos

quem não aguenta o ramerrão
a pressão da máquina
se fode
enlouquece,
se mata
ou se transforma
em algo pastoso e vil

milhões de pessoas
caminham pelas ruas sem sonho
ou perspectiva,
geralmente se aferram à primeira
tábua de salvação que aparece,
uma religião, uma seita doida, um vício, esporte,
qualquer coisa serve...

então a estupidez da vida se multiplica
e toma de assalto todos os transeuntes
até ouvirmos a frase definitiva
- que ouvi esta semana...

uma mulher se jogou do 10º andar da Blackshoes street,
o corpo estatelou a menos de dez metros de velho Jo
que, sentado, continuou a beber calmamente seu trago
e apenas comentou, segundos depois,
"não disse que ela ia furar a fila? eu falei..."

Um troço rombudo


"Lucy, quer ver meu caralhal?"
"O que?"
"Tenho uma plantação de caralhal. Tenho só a espiga matriz. Quer ver ela?"
"Se quiser me mostrar?"
"Quero".
"Então mostra".
"Ó".
"Porra, seu caralhal é enorme, Jimmy".
"Com este caralhal levo você pro céu".
(...), disse Lucy

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

a cidade morre ao longe


ainda estranho
a falta de humanidade
estranho a insensatez que há em tudo
e esse silêncio,
em tudo

os gatos não fazem mais barulho nos telhados
suas brigas sexuais me acalmavam
não ouço mais os gatos
só o depressivo ladrar dos cães
ao longe

longas madrugadas
e nunca reparei no céu
estrelas são luzes mortas
gosto de apreciar os ruídos da cidade insone

sei que os hospitais estão repletos
sei que os bares estão cheios de não profissionais
sei que os vagões do metrô ainda funcionam
sei que nos becos há assassinatos e roubos
sei de tudo isso

só não sei que fim levaram os malditos gatos

No more, Blackbird


nem sempre vou bem comigo mesmo
geralmente isso acontece a maior parte do dia
e quando não tem qualquer bar por perto
a coisa fica realmente tensa

vejo tanta gente medíocre passeando com os seus carrões
gente que nunca leu Bukowski, Fante, Kerouac, Corso
gente de grandes bundas gordas arrotando o último
benefício ganho
gente podre
em si
gente

nem sempre acontece de eu querer sair à rua
- isso sempre ocorre, geralmente quando acordo
mas há a obrigação do trabalho insosso,
envolto no dia abrasivo, solar

meus pés doem,
meus ossos doem,
o estômago, os rins, o pâncreas,
as articulações cansadas do mesmo moto continuum
de 27 anos

tudo somado hoje
não dá sequer uma sombra de homem,
que se mescla a pessoas satisfeitíssimas
com suas novas aquisições e empregos fáceis,
igual entre os parvos

Butterfly


uma borboleta negra e laranja
pousou em mim
uns podem ver nisto
um milhão de significados

para mim
aquilo não passa de
duas folhas que balançam
- comida de pássaro

entenda
não há significado algum
no aterrissar de um inseto
em você
ele apenas queria
sorver uma gota de suor de seu braço,
talvez

pare de ver nos acontecimentos
presságios erradios
tome um trago
trepe

meus olhos céticos
observam com a mesma dura indiferença
o propósito que somente os iniciados enxergam

A ela


Nunca farei você chorar
Nossas brigas são nada
O mundo é bosta
Para o que fomos,
Somos e seremos,
baby

Você é o meu amor de ontem,
De hoje e sempre, sempre
Você me embarga a voz,
Me faz querer ser humano,
Só um pouco

Não me importa, só você e o tinto agora,
Você sempre foi – e será – o meu melhor
O melhor que consegui na vida,
O melhor caminho,
A maior alegria,
Meu bem

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Intervenção


"Então, sr. Dusquene, o que tem a dizer?"

"Que estou seco. Que tal um tinto?"

"Esta reunião é justamente para você diminuir a bebida"

"Pensei que as duas estivessem aqui para uma farrinha particular"

"Concentre-se, sr. Dusquene, somos da Assistência Social. Sua situação é deplorável"

"Não menos lamentável que a do cachorro do vizinho"

"Que tem ele?"

"Sei lá. Sarna?"

"Que tal parar de beber por uma semana?"

"Que tal um dia?"

"É pouco. Quatro"

"Fechamos em dois"

"Tudo bem"

"Mas a partir de amanhã e com uma compensação"

"Qual?"

"Irmos imediatamente para a cama"

"Seu filho-duma..."

Um evento natural no Grand Hotel


Fred: Oh, meu Deus... O que é isso! Você quase decepou a minha glande! Puta-que-o-pariu!

Melissa: Desculpe (cuspindo saliva e sangue)... Eu não tive intenção.

Fred: Eu lhe disse pra tirar a porra desse aparelho ortodôntico antes do boquete! E agora? Pegue uma toalha... Oh, Deus...

(Melissa corre para o banheiro. Volta com uma toalha de rosto).

Fred: Sua cadela! Olha a enxurrada... Tem que ser de banho. De banho! Ligue pra emergência!

Melissa: O que?

Fred (já agachando): A emergência!

Melissa: Mas, e a toalha?

Fred: Esqueça a toalha. Ahhgg...Oh, meu Deus! Não para de sangrar. Estou ficando tonto... O que você está fazendo?

(Melissa, olhos assustados, girando a chave e abrindo a porta).

Fred: Aonde você vai? Volte aqui, vadia... Estou vendo negro.

Sete horas depois Fred foi achado morto, estendido sobre o carpete. Segurava os colhões, num mar de sangue. O tampo da glande do lado.

Uma ansiedade que me anima


se ela vier é porque quis
estarei aqui esperando no apartamento
o gato passará no patamar da janela
anunciando sua chegada
mandarei que ele desça

então, eu me levantarei
abrirei a porta e uma cerveja
e esperarei sua chegada
aguardarei um pouco mais
e fecharei a porta
se ela não vier...

sempre fui avesso a esperas
mas, por ela, farei um esforço
mas depois de dez minutos
voltarei a colocar meus pés
sobre a mesa de centro
coçarei meu saco
e abrirei outra cerveja
talvez não nessa ordem

Não pode a covardia agora, não agora


talvez eu faça um poema
que não fale de bêbados e bares
dos vencidos, dos desprezados,
do horror de crianças abusadas
em rodoviárias,
em obras inacabadas

um poema
que não fale da catequese
dos profetas de metrô tentando a todos com a conversão,
no último minuto da volta do relógio,
vaticinando momentos catárticos,
inesquecíveis

talvez não fale da grande dor
que é padecer na miséria dos cortiços urbanos
- 30 mil pessoas somente em (...) - ,
sabendo-se sem saída, com seus filhos,
filhos muito pequenos,
tão vulnerados,
em plena noite de Natal
em qualquer região
em qualquer cidade
em qualquer rua
em qualquer beco
em qualquer escada
ou vão

mas, então, do que falar na porra, no caralho deste poema?
às vésperas de perus e presuntos em mesas fartas, decoradas,
e tão distantes... deles

domingo, 16 de setembro de 2012

Científico como Deus ao sol

1.

- Qual canal você quer? 2, 4, 6, 10, 12 ou 14 ou 16 ou 18, sei lá. Escolhe...

- Você não tem tv a cabo?

- Não. Prefiro ver a porcaria toda que está entorpecendo a cabeça da humanidade... Sentir o perigo que me ronda...

- É, não deixa de ser uma razão...

- Não é?

- É.


2.

- Dusquene, quando você vai deixar de ser um filho-da-puta insensível?

-  Quando você for publicado?

- Nem assim. Escrevo para mim, nem penso em vocês.

- Como assim?

- A humanidade é o povoado de amebas que observo ao microscópio.

- ...

- Científico, não?


3.

- Você tem algum objetivo na vida?

- Ir vivendo... Juntando um troco para a velhice.

- Como?

- Camarada, eu não sei você, mas eu ralo há 30 anos em trabalhos escrotos, mentais, mas escrotos. Um dia vou me aposentar e vou esfriar meus ovos em uma piscina de água bem fria.


4.

-  Abigail, onde estão meus ovos?

- Nas calças!

- Não seja emgraçadinha comigo.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

O profeta nosso de cada dia


Ele passava quase todos os dias pela avenida, no meio da noite, gritando a plenos pulmões que o mundo iria terminar em poucos dias. "Vocês vão ver seus palermas. Ficam ajuntando dinheiro sujo, escroto debaixo do colchão... VOCÊS NÃO TERÃO TEMPO DE GASTÁ-LO!"

Alguém gritava de um dos apartamentos.

"E o que você nos aconselha, Sulffock? Que a gente dê a grana pra você?".

Sulffock, de barba longa e cinzenta, roupas puídas, olhava para cima, tentava em vão achar o remetente da mensagem no meio das luzes acesas.

Não conseguindo, berrava:

"DEEM SEUS RECURSOS AOS POBRES DE ESPÍRITO! PARA QUE POSSAM SANAR SUAS MISÉRIAS E NECESSIDADES FÍSICAS ANTES QUE VENHA A CALAMIDADE TAMBÉM SOBRE ELES".

Um outro gritou.

"Acabe com essa gritaria, seu alucinado. Todo o dia é essa porra! São quase 11 da noite. Tem gente que precisa trabalhar amanhã. Vê se arranja uma sarjeta pra você se encolher e dormir".

"FALOU A VOZ DE UM PECADOR EMPERDERNIDO!", malhou Sulffock, desta vez identificando o dono da voz e apontando para uma das janelas onde se encontrava um gordo de 130 quilos, de camisa branca.

O cara ficou puto.

"FIQUE QUIETO! NÂO SE MEXA! VOU AÍ PRA LHE MOSTRAR O QUE É UMA CATÁSTROFE IMINENTE!", disse e saiu da janela.

Depois de procurar Sulffock durante meia hora pelos becos e vielas do quarteirão, o homem o encontrou dormindo como criança, numa manjedoura feita de pilhas de jornais velhos, que ele catava de dia para ganhar a vida e manter toda a vizinhança informada sobre os futuros e inadiáveis acontecimentos.

Dias nossos que não temos porque não são realmente


os domingos são sempre dias mornos
entristecedores
são intervalos reais
entre a folga e a semana turbulenta

domingos servem mais a entidades preguiçosas
não aos homens
é como se houvesse uma quebrar no tempo
ou melhor, um soluço,
para então voltarmos à realidade de nossas vidas
insignificantes
comuns como um abrir de padaria

não gosto dos domingos
creio que 90% do Ocidente estão comigo
são dias realmente estranhos
nem úteis
nem agradáveis
plenamente

além disso, muitos bares fecham nesses dias
piorando a situação
agravando demais
a minha situação

A miséria que nos une na latrina


estamos sempre querendo
coisas que não são nossas,
sentimentalmente falando

o pouco - ou muito -
que conseguimos
não nos basta
a química não bate
a contabilidade não bate
nunca estamos felizes,
mas apenas
levemente satisfeitos

a essência do ser humano
é a incompletude
do amor
do vício
do sexo
da fuga
de deuses
e de tudo o mais

e, porque estamos
compreensivelmente sós,
mesmo num estádio de futebol,
nos damos ao prazer
de uma infelicidade mínima
mas permanente

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Uma semana de cão

Eu fumava uma carteira de cigarros por dia. Plaza ou Carlton.

Comecei a tossir desbragadamente por uma semana seguida. Uma tosse seca e constante.

Fui no médico. Doutor Medenhorf. Clínico geral.

- Tosse. Respire devagar. Agora tosse.

Medenhorf auscultou meus pulmões com o estetoscópio.

- Hummm. Sei não. A coisa não vai bem para você, rapaz.

Ele preencheu uma guia.

- Tire umas radiografias dos pulmões e volte aqui. E logo!

Sai do consultório já prevendo o pior. A doença maldita.

Fiz as radiografias no mesmo dia de tão ansioso que estava.

Liguei à tarde para a secretária do doutor. No outro dia, às 10 da manhã, eu estava no consultório.

Medenhorf tirou as duas radiografias do envelope duro da clínica.

Pôs no contraluz. Olhou por três ou quatro segundos e disse à queima roupa:

- Nunca vi algo parecido em toda a minha vida profissional...

Olhei para o doutor e depois para as radiografias no contraste.

- O que o senhor nunca viu?

- Seus pulmões estão envolvidos por uma película visível, clara como água. Está vendo?

Ele apontou áreas ao redor dos pulmões que realmente apresentavam um contorno indefinido, esbranquiçado.

- E isso é ruim?

- Péssimo, meu rapaz. Você deve ir urgentemente a um pneumologista. Logo!

Sai mortificado da consulta, com o envelope com as radiografias debaixo do braço.

Marquei a consulta com o pneumologista. Só tinha vaga daqui a uma semana. Não tinha jeito. Mesmo dizendo que era caso de vida ou morte, de pré-enterro, só daqui a uma semana.

Foi uma semana dos diabos. Uma espera cruel, aterradora.

No dia da consulta, lá estava eu no consultório do pneumologista.

A atendente me chamou. Entrei no consultório. Expliquei o caso.Ele me pediu as radiografias e as colocou no contraluz.

Olhou-as por três segundos.

Não aguentei:

- É câncer não é?

O médico me olhou.

- O senhor não tem nada nos pulmões.

- E essa película branca ao redor deles? - apontei.

- O senhor deve ter se mexido um pouco na hora em que as radiografias foram batidas. Noto que o senhor é muito ansioso... Esses contornos são normais... É o estremeção.

Vi sangue. Na minha frente só um nome: Medenhorf.

Agradeci o doutor. E sai dali. Precisava de um telefone público.

Liguei para Medenhorf. A secretária atendeu. Pedi para falar com ele. Caso importante. Ele não atendia ligações, mas, quando a secretária lhe disse quem era, ele ficou curioso.

- Medenhorf falando...

- É você, seu baita filho-duma-puta? Aqui é o Dusquene, o paciente que você enlouqueceu por uma semana dizendo que meus pulmões estavam envoltos por uma película cancerígena...

- Mas eu nunca disse que era câncer. Só imaginei que...

- Pois não imagine, seu traste! Você não sabe a semana dos cachorros que me fez passar. Você não é médico Medenhorf. Você é um sádico, um carniceiro, um carrasco, é isso que você é...

E desliguei, quase quebrando o telefone público.

Depois olhei para o envelope com as radiografias dentro dele.

Rasguei tudo com vontade. E deixei o espólio ali mesmo na rua.

O gari que se fodesse.








segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Da minha janela fria


você só conhece a cidade quando ela adormece
às 3h da manhã
quando chega perto
olha pela vidraça e vê carros esporádicos
passando sob os postes de luz laranja
vê o asfalto como uma enguia reta e cinza
indo e indo e indo

a longínqua sirene dos bombeiros
os gritos dos bêbados e suas brigas
o sexo dos gatos nos telhados
são esses os verdadeiros ruídos da cidade

não a loucura diária
não o café da manhã
não o jornal fresco
não os passos dos homens e seus trabalhos
não a normalidade aparente

cidades são como crimes a céu aberto
com seus prédios e sarjetas
hospitais e necrotério
guaritas e cancelas e becos

são
momumentos pagãos
a um deus qualquer
dê a ele você o nome que quiser
mas são um tributo a um deles - Moloch, talvez -
isso eu sei que são

O que fazem os homens às quintas


Wilbur caiu doente
A doce Mary cuidava dele
Mas Wilbur piorava
nas mãos de Mary
Por que?
Ninguém sabia
Mas quando Mary
tocava Wilbur
ele esfriava
e não queria negócio

Mary se conformou
até certo ponto
até que descobriu
que Wilbur comprara,
há seis meses,
Lola Rodriguez,
uma boneca inflável,
que ele amava mais que Mary

Os jornais noticiaram
no dia seguinte
o assassinato a faca de Wilbur
e o picotamento,
até as tripas,
de Lola Rodriguez,
pobre coitada

sábado, 8 de setembro de 2012

A derrocada de um pequeno homem


- Ehhe. Ehhhehhheeh.

Olhei. Era um velho, chamado Sigmour.

- Que foi? Não vai com a minha cara? - perguntei.

- Eu já tive mais mulher que você, Dusquene.

- Bom pra você – eu disse e beberiquei meu gim.

- Guardo o nome de todas as mulheres que fodi neste caderno. Ehhhehhhh.

Sigmour balançava uma agenda ensebada, ou algo assim.

- Como é que é, seu maníaco?

- Tá tudo aqui. Nome, local, horário da trepada.

- Você precisa ir ao psiquiatra, Sigmour. E isto é pra já.

Sigmour abriu o livro.

- Ahh, tive mais mulheres com “V”: Victoria, Vance, Vanda...

- Wanda não é com “w”? – perguntou um dos clientes que acompanhava a conversa.

- As minhas são com “V”. Tive três VANDAS.

Sigmour abriu seu sorriso desdentado. Tinha uns 70 anos.

- Me orgulho muito deste livrinho.

- Deixe-me ver os nomes – disse o cliente.

- Isto não é para seus olhos, filho – disse o velho.

- Queime ele - eu disse – ou passe os nomes a limpo. A agenda está porca, imunda. Acho que você não consegue ler os nomes que estão aí.

Sigmour ficou puto.

- ISTO É MINHA VIDA, DUSQUENE. ISTO É TUDO O QUE ME RESTA NESTA MERDA DE VIDA. NÂO ME VENHA COM BRINCADEIRAS!

No que ele falou a agenda veio abaixo. Esfarelou-se.

As folhas espalharam-se pelo chão do bar. Caíram aos pés das pessoas.

E estavam todas em branco.

Sigmour olhou as folhas jogadas pelos cantos. Sua boca começou a tremer. Depois seus braços e pernas. Depois ele inteiro.

Via diante de mim o desmoronar de um pequeno homem. De uma ilusão.

Fiquei triste. Mas não podia fazer nada.

Aliás, fiz. Levantei Sigmour do chão.

Paguei a ele uma bebida forte. E continuei a beber meu gim.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Sempre há uma possibilidade de escapar do inevitável


No futuro, homens se deslocarão em grandes cilindros. Explico. Você será acondicionado em uma cápsula com espaço para uma, duas, quatro, dez pessoas. E, a partir de um poderoso sistema de sucção e propulsão magnética, será jogado numa espécie de autopista. Chegará assim por exemplo, de forma programada e numa velocidade espetacular, no local de trabalho, a 200/400 km de distância.

“Oh, meu Deus, vomitei todo o almoço”.

“Frank, cadê Jezebel?”.

“Sei lá, deve ter embarcado na pílula errada...”

“PARA ONDE, FRANK? MINHA POODLE ESTÁ PERDIDA! VOCÊ TEM DE ENCONTRÁ-LA!”.

“PUTA-QUE-O-PARIU, MARTA! SÃO TRINTA E DUAS OPÇÕES DE EMBARQUE NA CANCELA TRÊS. COMO VOU SABER ONDE A CACHORRA SE ENFIOU?!”.

“FALE COM O MONITOR DO SETOR, POR FAVOR...”.

Não adiantou. O monitor tinha mais o que se preocupar. Disse que não vira animal algum perdido nas imediações. Só restava comunicar ao Setor de Achados e Perdidos.

Para lá se dirigiram.

“Mas vocês cuidam de coisas vivas, não?”.

“Se não forem muito agressivas...”, disse o sonolento rapaz da recepção.

“Ela morde, às vezes...”, atalhou Frank.

“FRANK!”

“Se tentar morder vai pro CEO direto”, emendou o garoto do balcão.

“CEO? Mas o que é CEO?”

“Centro de Eliminação de Objetos... Objetos que estão com defeito são descartados na fornalha”.

“O QUE?! VOCÊS NÃO DIFERENCIAM COISAS INANIMADAS DE VIVAS”.

“Não temos tempo pra isso, madame. O trabalho aqui é corrido. Vazou, explodiu, enguiçou, mordeu... Vai pro fogo na hora”.

“SEUS BRUTOS! QUERO VER O GERENTE DESSA ESPELUNCA AGORA! EXIJO VER O RESPONSÁVEL!”, esbravejou Marta.

Seguiram um dos auxiliares por um corredor longo e escuro. No final do mesmo, o rapaz apontou uma porta de vidro, onde se lia:

“SR. HUMBOLDT CABLE. Gerente-titular do SETOR B-3 de Achados e Perdidos. Proibido terminantemente entrada de animais. QUALQUER UM!”

“Outro dia inesquecível...”, disse um conformado Frank, girando a maçaneta para a passagem da mulher.

Às vezes é apenas um momento


é fácil perceber a rua sem saída
quando damos de cara com o muro
quando o estacionamento do supermercado
está lotado

é fácil ver quando as contas vencem
quando o saco de lixo vaza
o ralo entope
a merda flui

quando o cachorro fez as necessidades no carpete
quando vai ser um dia daqueles
e quando a dona de bunda e coxas tensas
está também num daqueles dias
eh, sei não
fico quieto
bem quieto

é
é fácil
realmente
perceber as coisas
palpáveis, concretas
de aço

mas como não conseguimos compreender
com a mesma exatidão e urgência
A DOR DO OUTRO

se a solidão e a desistência
- e o suicídio -
estão bem ali
escancarados em cada rosto

Otto Dusquene, agora

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

As ruas

as ruas estão aí
e temos que fazer alguma coisa com elas,
temos que deixar nossa impressão nelas,
nossos passos trôpegos,
nossas histórias vagas, remotas,
nossa miserabilidade por inteiro

temos que olhar para elas
e elas precisam devolver o olhar
- e saber que estamos nelas
e elas em nós

temos que dizer a que viemos:
vomitar em seus becos,
mijar, cuspir nas calçadas,
penetrar em
suas entrâncias,
sentir seus cheiros,
bons e ruins,
beijar o sovaco,
fazer sexo com elas,
esporrar nos rostos
dessas safadas

as ruas estão aí para isso
para serem apreendidas
e vividas

Enquanto calço os sapatos


quando calço os sapatos
sinto-me entregue
num cansaço corporal secular

tenho quase 50 anos...
mas sinto como se já tivesse vivido bem mais
as pessoas já não me interessam
sei muito sobre elas
e isto as torna, para mim,
aquilo que se põe no bueiro

raras são as vezes que suporto
seus olhares, seus andares,
é como se caminhassem para o nada
mas procriando feito porcos

creio que o homem está numa encruzilhada
e não decidiu que caminho seguir
parece que tudo já foi dito, feito,
revirado
não há mais boas-novas
nem a mínima perspectiva de uma bomba atômica
que pudesse dar fim a tudo

Otto Dusquene

Sortilégio


ela às vezes me olha da escada
quando estou descendo
estanca
não dura muito
mas tem algo ali
pelo menos
ancas e pernas isso tem
um par de olhos tristes
uma boca
um delírio

gosto quando ela encurva
as costas
gosto das roupas justas
da fala
do drink maneiro
bem servido
uísque
depois vodca com limão
depois mais vodca
legal

ela
tem um presságio
de que nada vai acontecer
e eu já estou abocanhando
um dos peitos
tirando a calcinha
pra enfiar o mangalho

Um pouco de decência faz muito bem


gosto de ficar “quentando” ao sol
me faz bem
tenho sangue “frio”
sou um anfíbio
réptil, sei lá

deixo a cerveja
na mesa
na sombra
e sento ao sol
e estico as pernas brancas
de cera
é bom

tem o toldo verde do bar
que faz um ambiente
meio marítimo
isso também é bom

dá uma certa decência
uma pausa
no desconforto

e tem as mulheres
com seus rabos incríveis
passando diante de mim

elas fingem que não me notam
mas eu sei que enxergam
“esse cara quer enfiar
sua trolha em mim,
cafajeste”

gosto, realmente gosto de ficar
mamando uma cerveja
“quentando” ao sol

Otto Dusquene, o DUC

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Big Lane

Big Lane pesa 140 quilos e adora churros, fritas e carnes bem e mal passadas
Big Lane passa pela Pomerode e Blueshoes atacando os carrinhos de hotdogs
Big Lane é esse monstro ocidental que deixa os africanos na penúria
Big Lane é essa fome insaciável por ovos, hambúrgueres, queijos, salsichas, amendoins e barras de chocolate
Big Lane é a América Unida devorando o mundo
"América, quando você mandará seus ovos para a Índia?", perguntava Ginsberg
Nunca, nunca, jamais...
Por Big Lane, não

Minha preferência por aeroportos


Gosto de aeroportos. Dão distinção às pessoas. Gosto de me sentir distinto, às vezes. Chegam com suas bagagens, de táxi. Ajeitam as malas nos carrinhos e partem rumo a não sei onde. Avião é um negócio confortável. Tem o uísque, as aeromoças de taileurs com seus cabelos presos. Tudo muito distinto e sexy, legal, huumm...

Só não aprecio os solavancos. As turbulências fazem coisas horríveis com nossos estômagos, principalmente quando já existe meio litro de scoth dentro dele. Realmente, turbulências encurtam o buraco do cu, dão tensão. "Vai cair, meu Deus, agora cai".

Certo dia peguei um avião. Todos os passageiros colocaram o cinto por solicitação da aeromoça gostosa. O tempo começou a correr e nada de o avião embicar. Uma senhora, já velha, na poltrona atrás da minha, perguntou:

- Que houve? Por que não sobe?

Ai não resisti e comentei alto com o gordo sentado ao meu lado:

- Parece que estão retirando a carcaça de um falcão maltês que, desavisadamente, foi sugado e se esfarelou em uma das turbinas no vôo anterior. Vamos ter de decolar com uma só turbina. O que é preocupante...

Dei uma espiada para trás.

A velha me olhava com os olhos esbugalhados,a boca semiaberta. Por fim, gaguejou:

- Mas isso é possível? Viajar com apenas uma turbina?

- Voaremos de banda, minha senhora - eu disse e me virei, pensando "Dusquene, seu bom filho duma puta, você ainda vai matar alguém".

Os Porquês


por que essa urgência, essa premência
                                        para magoar?
por que as ruas estão cheias de sonhos mortos
            que esbarram em pessoas tristes?
por que essa falta de?
por que a ficha jamais cai na máquina?
essa fatalidade...
          por que essa falta de qualquer coisa?
tanta ironia e impiedade
por que essa carência de sentimento?
ei,
ninguém sabe a quantidade certa de uísque
                     que traz a tal felicidade?
será que ninguém vê o que acontece nas ruas?
E por que tantos pobres e,
                                     principalmente,
por que tão poucos ricos
            com suas piscinas, carros, mulheres, 
    e garagens (quero o meu quinhão deste sonho)
              e possibilidades
                              e tudo o mais?
                           por que esse
abandono
              e essa insônia rubra?
porra,
por que ninguém me diz
                                 nunca
"vai cara, você consegue".

O IDIOTA


Ninguém está a salvo de um idiota. Eu não estou. Você não está. Ninguém está. O idiota se apodera, se avoluma. Torna o dia mais difícil de ser suportado do que já é. Empesteia o ar. Mata a pouca esperança que ainda existe.

E eles se propagam que nem moscas. Estão em toda a parte. Cientes de sua estupidez, mas, nem por isso, deixando de defecar sobre nossas cabeças.

Otto Dusquene

Tédio, essa enguia


Eu não escrevo para você, camarada. Eu escrevo para mim. Para algo fazer sentido, um pouco pelo menos. Para não morrer de tédio, essa enguia, e poder suportar o ramerrão. O baque cotidiano.

Distraio-me com o jogo. Mas os números não colaboram. Mudo o esquema, e nada. Tenho uns 30 esquemas no bolso. Vou variando. Mas as bolas não cooperam. Estão combinadas para me foder, e a você também, se você joga. Se cuide.

É uma merda. Outro dia cinza, sem o horroroso brilho no plexo solar.

É, bem, ainda estamos vivos. Um pouco.

Dusquene

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O estorvo caos em que me há de acalentar

1.
Sou bem normal, olhando a espécie como um todo.

2.
Bebo com certa regularidade.

3.
"Dusquene, aonde vai?"
"Comprar cigarros?"
"Você não fuma há 18 anos".

4.
É preciso deixar o otimismo em grau de latência.

5.
Ah, o sol, o maldito sol... Umidade: 15%.

6.
Não há melhor caminho do que a ida até
a geladeira, quando tem cerveja ou um tinto.

7.
Ser forte é ter paciência.

8.
Aliás, paciência é coragem.

9.
Por que toda mulher feia acha que todos a querem,
a perseguem nas ruas, ávidos pelo seu corpo?

10.
Muitos durante anos só fodem a paciência alheia.

Enquanto na veneziana aberta do meu pobre ser


1
Qualquer um pode ser um idiota. A burrice não tem proprietário único.

2
As mulheres têm a propriedade de fazer os homens tremendamente infelizes, quando fazem disso a razão de suas vidas.

3
Escrever é confissão.

4
O escritor não precisa de páginas em branco, ncessita ter vivido, pelo menos um pouco.

5
Me disse Rose:
"Dusquene, quando você prestar, você não escreverá porra alguma que preste".
É, você sacou o lance, Rose.

6
Não se engane, camarada,
Você está tremendamente só.
Não se deixe enganar...

7
Bill fugiu com Lilly
E que merda eu tenho com isso?

8
Ninguém sabe o dia de amanhã
Mas muitos não sabem nem o de hoje,
o que fazer de suas pobres vidas

9
O fim é o fim, amigo.
Tente adiá-lo, se você conseguir, me ligue.

10
Abraço do Otto

domingo, 2 de setembro de 2012

O homem mais feliz do mundo

Slim me contou essa história:

A filha do rei adoeceu. Uma doença incomum, letal. O rei consultou os magos do reino à procura de uma cura para aquele mal. Um deles olhou a jovem princesa inconsciente em seu leito (huum... belas tetas... bem, mas isso não faz parte do negócio) e disse ao rei: "Esse mal só tem cura se a moça se cobrir com a camisa usada pelo homem mais feliz do mundo". Então, o rei perguntou aonde poderia achar o tal homem. O mago não soube dizer.

O rei vestiu-se como um andarilho e saiu cavalgando em desespero, subindo e descendo colinas, serras, montanhas, rompendo vales, até que, no fundo de um desses vales, ouviu uma risada. A gargalhada de um sujeito feliz. Ele foi entrando na mata e topou, numa clareira, com um lenhador, que golpeava toras de madeira com o seu machado. O homem gargalhava de chorar, com três ou quatro crianças, brincando ao seu redor, a uma distância segura dos golpes.

O rei aproximou-se e perguntou ao homem, que usava apenas um jeans surrado (a história não é tão antiga assim e as tetas da princesa realmente eram ótimas), porque ele estava tão feliz, em meio àquele trabalho árduo ao sol. "Ora, meu amigo, faço o que gosto, vivo na natureza, respirando ar puro... Tenho uma mulher maravilhosa, que me serve todas as noites por três vezes, e tenho filhos sadios e robustos como ursos, porque não haveria de ser feliz. Feliz só não: EU SOU O HOMEM MAIS FELIZ DO MUNDO!".

O rei quase se ajoelhou de emoção. E perguntou: "O senhor poderia me emprestar uma camisa?". Ao que o lenhador respondeu: "Camisa? Não tenho. Nunca tive. Para quê...", apontando para a paisagem. E sorriu seu riso alegre e bestial.

sábado, 1 de setembro de 2012

Velho Slim

De todos os bêbados, o velho Slim era o melhor. Sabia viver
o velho, como sabia beber e alcançar sabedoria com a
bebida; e cada vez mais ele bebia para se tornar o maior
sábio da planície. O melhor da planície de bêbados, o velho Slim,
o maior dessa cidade dos diabos, cheia de pessoas exaustas,
que vomitam palavras piedosas, entediando todo o mundo,
querem que as acompanhe nos seus jogos enganadores até o infinito.
Mas Slim não era esse tipo de pessoa, que amargava um mau pedaço,
ia em frente com sua verve, seu riso debochado, com dentes rilhantes,
aqueles olhos de demônio que viam as coisas como realmente são:
- O problema, Dusquene, é que as pessoas não sabem aonde querem chegar
e não saber aonde se quer chegar é um perigo, rapaz, um perigo... Fred,
me traga mais uma cerveja. E tem mais uma coisa que eu quero lhe dizer...
E ficava ali, simplesmente, tentando dizer, mas rindo, rindo apenas,
completamente bêbado, uma amizade sincera a nossa: o velho Slim e eu.

A melhor hora da cidade em que ela vive


vejo a cidade morta às quatro horas da manhã
as ruas parecem a pele de um imenso anfíbio negro-cinza
pisada por bêbados erradios e sujos de merda
estou bebendo um tinto de qualidade; e isto é bom
vejo os carros na pista, ao longe, na hora plena
a melhor hora da cidade: quando todos dormem e
e ela, enfim, pode respirar, ficar em paz, livre de
passos, cusparadas, gimbas de cigarro, vômitos...
existe a possibilidade de um assassinato, logo,
mas isso sempre há em qualquer lugar do mundo
nem falo das sirenes de bombeiros e polícias
nem digo do meu incômodo de fazer parte disso...
a minha bebida me basta; nada hoje de rostos
e vozes humanas: só quero esse silêncio, imerso
em álcool, como uma quietude de mim mesmo agora

Sobre o chão de Saturno, essa merda...


esta noite
estou triste
as coisas
não fluem
como deveriam

nem as mulheres
de dia
estavam melhores
nas ruas
hoje

e
todos são
indiferentes
a todos

levam suas mágoas
e angústias
presos
como tigres contidos
uma merda...

e vão morrer
disso
aos poucos
sempre

e assim
viveremos
até o fim
sem dar qualquer
espaço ao que
realmente
queremos fazer
ou dizer