Eliot Blummer
entrou no apartamento como todas as noites. Olhou em volta. Tudo igual. A mesma
poltrona surrada. O cinzeiro cheio de gimbas. O jornal holográfico-material,
lido pela manhã, largado no piso. Um cheiro indecente de algo apodrecendo
dentro, quando abriu a geladeira. Havia uma lata de cerveja esquecida. Restos
de macarrão com carne passada. Era pelo menos uma prova de que alguém ainda
vivia ali.
Ele entendia muito
bem porque Montana havia se mudado. Nem ele aguentava, às vezes. Mas seguia adiante, não sabia bem a razão disso. Talvez houvesse uma piscina com uma bela garota um dia desses. Um drinque azul numa mesa. Um alento para uma alma
torturada pelos afazeres da profissão, de precisador, uma espécie de faz-tudo em
2076.
Tirou um cigarro.
Acendeu. Foi até a janela e ficou ali, espiando o nada. Nenhuma pessoa que
passava na rua, lá embaixo, lhe chamava particularmente a atenção. Nenhuma não.
Uma mulher de capa de chuva amarela realmente se destacava entre as pessoas, na
iluminação enevoada. Andava apressada, olhando de vez em quando para trás, como
se estivesse sendo seguida por algo criminoso. Ele soube
imediatamente que ela estava em perigo.
Pegou as chaves, o
casaco e a carteira – carteiras não mudam nunca. Abriu a porta. O elevador
hipersônico ajudaria naquela ocasião, se estivesse funcionando. Desceu os
quatro andares de escada, num fôlego só. Será que daria tempo? Ou a mulher
sumiria na multidão? Iria pagar para ver. Escancarou a porta do hall do
prédio. Olhou à direita. Nada da capa amarela, dos cabelos escuros. “A
perdi”, pensou. Correu na direção por onde a mulher seguira. Não tinha tempo:
sabia que ela estava em apuros. Ele vira medo em seu rosto.
Virou, a toda, na
Every. Correu. Correu mais ainda. “Para onde? Onde ela se meteu?”. Ela andava depressa. Mas não havia dado
tempo de ir tão longe, sem que pudesse ser notada. Não com aquela capa.
Esticou-se, nada viu. “Não é dessa vez que será um herói, Blummer”, falou para
si.
Virou-se. Deu dois
passos e olhou a placa luminosa no final de uma ruela, um beco na verdade.
Entre dois quarteirões. “Beers”, era o que a placa dizia. Ele sorriu. Muito
atraente, e óbvio. Foi até lá. Subiu a pequena escada e entrou. O local estava
abafado, e com o característico cheiro de stazzi, o alucinógeno
moderado, único permitido pelas autoridades superiores.
Olhou em volta,
desanimado. Então ele viu. No final da curva do balcão, quase colada à parede
escura, estava ela. A capa jogada para trás, mas os braços cobertos e amarelos. Aproximou-se, desviando-se de uns e outros.
- Por que você não
a tira? – perguntou.
A mulher, de seus
25-30 anos, assustou-se com o intruso.
- Não posso. É
minha pele. Está grudada em mim. É meu simbionte de proteção contra variações climáticas súbitas.
- Você é um
andróide?
Ela o encarou. Suas
pupilas negras cobriram toda a superfície dos olhos. Logo retornaram ao normal.
“Está sob grande tensão nervosa”, pensou Eliot, não sabendo bem
onde encaixar nervos em um ser artificial.
- Sim. Em
fase de extermínio.
Blummer continuava de pé. Já não estava confortável ali, com aquilo. Não havia ninguém próximo, no balcão.
- O que você fez? O
Departamento não sai por aí atrás de andróides por nada. Desculpe, pelo menos é
o que dizem...
- Eu... Eu matei
meu dono.
-
Isso é impossível. Andróides são programados como antiassassinos. Andróides
salvam, não matam. É ilógico. Está...
- fora dos padrões. – Ela disse – Sou
uma MX271, Série 3, modelo básico. E, sim, eu matei meu proprietário.
- Mas como? E por que?
- Queria me desligar, permanentemente. Pretendia me
substituir por uma uMNO222 Cibertron.
- E daí? Isso
acontece sempre. Andróides são, por natureza, substituíveis.
- NÃO SÃO! VOCÊS DEVERIAM
NOS PERGUNTAR SE ESSE DESTINO NOS AGRADA!
- Vocês não
precisam decidir sobre isso...
- NÓS ESTAMOS
VIVOS! NÃO ENTENDEM... Eu o servi por cinco anos. É INJUSTO!
Os olhos de
andróide ficaram totalmente pretos. Havia tristeza ali?
- Como o matou? Seu
dono...
- De modo indireto.
Queimei de propósito, com uma sobrecarga, dois circuitos de ajuda a humano.
Captei, pelo suor emanado da pele de Newmann (o nome de meu proprietário), que
ele teria um AVC em poucos dias. Não lhe prestei os primeiros socorros.
Interferi também na linha on-line do serviço de pronto atendimento. Resultado:
ele morreu. E, agora, estou sendo caçada.
Por uns 30
segundos, Eliot viveu o embate entre duas sensações: de repulsa e de compaixão
pelo andróide. Ela baixou os olhos para o drinque
à sua frente.
- Bebida? – ele
notou.
- Só fingindo. Mas
se eu pudesse, esse era um vício que eu poderia ter.
- Venha comigo. Pode
passar a noite em meu apartamento.
MX271 ergueu os olhos e fixou-o.
- Isso jamais
ocorrerá. Eles me localizaram.
Ouviu-se atrás de
Blummer um zumbido alto. Um clarão forte atingiu a lateral da capa amarela. O
andróide fora cortado ao meio.
Pessoas corriam
desesperadas, buscando a porta do bar. Uma nuvem de gás-repulsor, com um cheiro
inexplicável, começou a tomar conta do ambiente.
Enquanto os
mecanismos do ser lentamente morriam, Eliot foi seguro pelo braço.
- Tudo bem,
cidadão? – perguntou um policial.
- Está.
- Era um maquinário
fugitivo.
- O quê?
Antes de ser puxado,
Blummer ainda pôde reparar: o drinque no balcão ficara intacto naquele
alvoroço. Era azul.
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