segunda-feira, 14 de abril de 2014

DRINQUE AZUL (BLUE DRINK)



Eliot Blummer entrou no apartamento como todas as noites. Olhou em volta. Tudo igual. A mesma poltrona surrada. O cinzeiro cheio de gimbas. O jornal holográfico-material, lido pela manhã, largado no piso. Um cheiro indecente de algo apodrecendo dentro, quando abriu a geladeira. Havia uma lata de cerveja esquecida. Restos de macarrão com carne passada. Era pelo menos uma prova de que alguém ainda vivia ali.

Ele entendia muito bem porque Montana havia se mudado. Nem ele aguentava, às vezes. Mas seguia adiante, não sabia bem a razão disso. Talvez houvesse uma piscina com uma bela garota um dia desses. Um drinque azul numa mesa. Um alento para uma alma torturada pelos afazeres da profissão, de precisador, uma espécie de faz-tudo em 2076.

Tirou um cigarro. Acendeu. Foi até a janela e ficou ali, espiando o nada. Nenhuma pessoa que passava na rua, lá embaixo, lhe chamava particularmente a atenção. Nenhuma não. Uma mulher de capa de chuva amarela realmente se destacava entre as pessoas, na iluminação enevoada. Andava apressada, olhando de vez em quando para trás, como se estivesse sendo seguida por algo criminoso. Ele soube imediatamente que ela estava em perigo.

Pegou as chaves, o casaco e a carteira – carteiras não mudam nunca. Abriu a porta. O elevador hipersônico ajudaria naquela ocasião, se estivesse funcionando. Desceu os quatro andares de escada, num fôlego só. Será que daria tempo? Ou a mulher sumiria na multidão? Iria pagar para ver. Escancarou a porta do hall do prédio.  Olhou à direita. Nada da capa amarela, dos cabelos escuros. “A perdi”, pensou. Correu na direção por onde a mulher seguira. Não tinha tempo: sabia que ela estava em apuros. Ele vira medo em seu rosto.

Virou, a toda, na Every. Correu. Correu mais ainda. “Para onde? Onde ela se meteu?”. Ela andava depressa. Mas não havia dado tempo de ir tão longe, sem que pudesse ser notada. Não com aquela capa. Esticou-se, nada viu. “Não é dessa vez que será um herói, Blummer”, falou para si.

Virou-se. Deu dois passos e olhou a placa luminosa no final de uma ruela, um beco na verdade. Entre dois quarteirões. “Beers”, era o que a placa dizia. Ele sorriu. Muito atraente, e óbvio. Foi até lá. Subiu a pequena escada e entrou. O local estava abafado, e com o característico cheiro de stazzi, o alucinógeno moderado, único permitido pelas autoridades superiores.

Olhou em volta, desanimado. Então ele viu. No final da curva do balcão, quase colada à parede escura, estava ela. A capa jogada para trás, mas os braços cobertos e amarelos. Aproximou-se, desviando-se de uns e outros.

- Por que você não a tira? – perguntou.

A mulher, de seus 25-30 anos, assustou-se com o intruso.

- Não posso. É minha pele. Está grudada em mim. É meu simbionte de proteção contra variações climáticas súbitas.

- Você é um andróide?

Ela o encarou. Suas pupilas negras cobriram toda a superfície dos olhos. Logo retornaram ao normal. “Está sob grande tensão nervosa”, pensou Eliot, não sabendo bem onde encaixar nervos em um ser artificial.

 - Sim. Em fase de extermínio.

Blummer continuava de pé. Já não estava confortável ali, com aquilo. Não havia ninguém próximo, no balcão.

- O que você fez? O Departamento não sai por aí atrás de andróides por nada. Desculpe, pelo menos é o que dizem...

- Eu... Eu matei meu dono.

         - Isso é impossível. Andróides são programados como antiassassinos. Andróides salvam, não matam. É ilógico. Está...

                - fora dos padrões. – Ela disse – Sou uma MX271, Série 3, modelo básico. E, sim, eu matei meu proprietário.

                - Mas como? E por que?

                - Queria me desligar, permanentemente. Pretendia me substituir por uma uMNO222 Cibertron.

- E daí? Isso acontece sempre. Andróides são, por natureza, substituíveis.

- NÃO SÃO! VOCÊS DEVERIAM NOS PERGUNTAR SE ESSE DESTINO NOS AGRADA!

- Vocês não precisam decidir sobre isso...

- NÓS ESTAMOS VIVOS! NÃO ENTENDEM... Eu o servi por cinco anos. É INJUSTO!
   
Os olhos de andróide ficaram totalmente pretos. Havia tristeza ali?

- Como o matou? Seu dono...

- De modo indireto. Queimei de propósito, com uma sobrecarga, dois circuitos de ajuda a humano. Captei, pelo suor emanado da pele de Newmann (o nome de meu proprietário), que ele teria um AVC em poucos dias. Não lhe prestei os primeiros socorros. Interferi também na linha on-line do serviço de pronto atendimento. Resultado: ele morreu. E, agora, estou sendo caçada.

Por uns 30 segundos, Eliot viveu o embate entre duas sensações: de repulsa e de compaixão pelo andróide. Ela baixou os olhos para o drinque à sua frente.

- Bebida? – ele notou.

- Só fingindo. Mas se eu pudesse, esse era um vício que eu poderia ter.

- Venha comigo. Pode passar a noite em meu apartamento.

MX271 ergueu os olhos e fixou-o.

- Isso jamais ocorrerá. Eles me localizaram.

Ouviu-se atrás de Blummer um zumbido alto. Um clarão forte atingiu a lateral da capa amarela. O andróide fora cortado ao meio.

Pessoas corriam desesperadas, buscando a porta do bar. Uma nuvem de gás-repulsor, com um cheiro inexplicável, começou a tomar conta do ambiente.

Enquanto os mecanismos do ser lentamente morriam, Eliot foi seguro pelo braço.

- Tudo bem, cidadão? – perguntou um policial.

- Está.

- Era um maquinário fugitivo.

- O quê?

Antes de ser puxado, Blummer ainda pôde reparar: o drinque no balcão ficara intacto naquele alvoroço. Era azul.   

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